Com mais de 30 anos de carreira, muitos deles ao serviço de uma das bandas de maior sucesso no país, Miguel Ângelo continua em busca da novidade. Recusa estagnar, mostra que a veia criativa não se esgotou nos Delfins e a prova é o novo álbum a solo, Noite e Dia, acabado de lançar.
O que nos traz aqui é o teu novo disco a solo, mas tratando-se de um tipo com mais de 30 anos de carreira, queria dividir esta entrevista entre presente e passado. Por onde queres começar?
Pelo futuro.
Ah. Então, tencionas explorar, no futuro, o que fizeste na parte “Noite” deste disco, aquela experimentação, electrónica, spoken-word, muito futurista?
Eu acho que sim, quando se começa uma coisa deste género não é só para fazê-la superficialmente ou de uma maneira um bocadinho desligada. E é algo que é fácil de fazer, no sentido de termos um laptop e podermos trabalhar em casa, com uma placa de som e um teclado midi, é algo que nos dá uma grande liberdade de composição nesse sentido. E também a maneira como isto foi feito, não foi feito a pensar num palco pop – nessa altura do primeiro confinamento em que as coisas estavam muito negras e não se sabia bem o que ia acontecer – mas a pensar numa espécie de banda sonora para aqueles dias, que depois podia ser levado para palco, mais em jeito de performance ou o que fosse, não propriamente o espectáculo pop mais tradicional. Acho que sim, que vou continuar a fazer trabalhos nesta direcção, até porque é uma vertente de que eu também gosto bastante, além das canções pop, e acho que nesta fase dos 30 e tal anos de carreira, o que há a fazer é explorar a multiplicidade de caminhos de que um tipo gosta, mesmo que não sejam aqueles territórios mais comerciais ou mais familiares.
Já no disco anterior tinhas trabalhado com muita gente nova (D’Alva, Filipe Sambado, Chinaskee, Surma), agora voltaste a ter convidados da nova geração: Pedro de Tróia, Rui Maia, Co$tanza. Como é que chegaste a eles?
Fui ter com eles. O Rui Maia já tinha feito umas remixes para um tema meu, mas já o conheço dos X-Wife há muitos anos, sou amigo dele e achei que era a pessoa ideal para me completar e ir mais longe nestas seis visões que eu tinha preparado para o lado “Noite”. No caso dos outros nomes, eu tenho conhecido muita gente nova devido a funções que tenho, relativamente ao ensino privado, de produção e criação musical, tive uma grande ligação à Etic nos últimos anos e é aí que tenho conhecido muita gente nova, que tem passado pelo curso que eu coordenava, um curso de 3 anos que é o único curso em Portugal que dá uma licenciatura em produção, portanto há muita gente… eu conheci o Chinaskee ainda novinho, a fazer trabalhos sobre a evolução da banda sonora do Pokemon, e conheci-o desde o início e fiquei fã, o primeiro EP dele – Malmequeres – é realizado e produzido no decorrer de uma cadeira que eu dava na Etic.
E portanto comecei a conhecer muita gente nova, de 19, 20, 21 anos… embora professor/aluno eu costumo dizer que ali somos todos músicos, somos colegas, logo no primeiro ano os miúdos já estão fazer temas fantásticos e a gravar coisas bem gravadas, portanto somos todos colegas. E depois naturalmente por uns acabo por ter mais empatia com a música que eles fazem e com o estilo musical que eles têm. É o caso do Chinaskee, o caso também do Miguel Costa, o Co$tanza… quando me apareceu um miúdo que no primeiro apresentou um trabalho que era basicamente tocar as linhas de baixo todas dos Gang of Four eu achei estranho, mas obviamente isso aproximou-me logo dele. E tem sido assim, por boca a boca e por amizades que as coisas têm avançado, mais do que haver uma estratégia, dizer «olha vou chamar um gajo novo agora, para ficar mais cool».

E nessa tua ligação à Etic, sentes-te um bocado como o Obi Wan, a ensinar os jovens jedi?
Não, porque neste caso os jovens Jedi também me ensinam muito.
Envolveres esta gente nova na tua música serve para te ajudar a não te acomodares, a procurares novas linguagens e reinvenções?
Sim, claro. Quando fazemos música durante muitas décadas, muitas vezes sozinhos, já não há tanto aquela coisa de ir para uma sala de ensaios com os músicos, as coisas são um bocadinho mais solitárias hoje. Eu continuo a ter uma estrutura de banda, estou a solo mas os músicos que estão comigo são família, é uma banda e ainda trabalhamos dessa maneira às vezes mas perdeu-se um bocado esse espírito, confesso, e portanto às vezes estamos sozinhos e dizemos «e agora para onde vou levar esta canção?». E é aí que entra esta tentativa de mistura com uma geração nova, que faz as coisas de maneira diferente e tem uma estética diferente. Eu estou sempre a fugir ao equilíbrio que às tantas preciso para não desapontar fãs antigos, que querem ouvir a minha voz de certa maneira. Por exemplo, quando usei alguns efeitos, com o Sambado, na canção “Nova”, logo um monte de gente «epá mas estás a estragar a tua voz com esses efeitos», e há muita gente conservadora que gosta de mim, e estou sempre a tentar fugir a isso, fugir à responsabilidade de ter esse equilíbrio entre um lado mais pop e um lado mais experimental dentro da pop. Mas essa é uma questão diária, mas eu estou sempre a fugir, não quero ficar refém dela, estou sempre a tentar… ok vou continuar a fazer canções, e fiz isso agora no Noite e Dia, tentei fazer 5 boas canções para o Lado A e depois poder ter essa liberdade no Lado B, no lado Noite, de andar por outros caminhos mais exploratórios.
Isso é uma posição um bocado ingrata, não podes dar largas à experimentação a 100% para não alienar os fãs antigos. É difícil de gerir?
Sim, é uma questão… podíamos falar até pelo lado económico, mas nem sequer é isso, eu felizmente tenho algumas almofadas económicas resistentes. Se eu quisesse dizer «ok vou fazer música para não ganhar dinheiro nenhum mas é a música que eu quero e estou a borrifar-me nesse aspecto», nem sequer é essa a questão. Eu faço, não por essa necessidade, mas por ter algum respeito pelas pessoas que me acompanham há muitos anos e sei que gostam da minha música e me têm acompanhado em momentos melhores e piores, e portanto há quase esse respeito pelos fãs, não aliená-los completamente, não boicotar a minha carreira. Embora essa parte também me fascina um bocadinho, as pessoas mudarem completamente de caminho, de carreira. Um dos tipos de que eu mais gosto dessa onda é o Scott Walker, que fez um percurso estranhíssimo e conseguiu completamente mudar a percepção para uma nova geração, a percepção que as pessoas tinham dele enquanto artista. Mas isso serão outros campeonatos.

Voltando à parte electrónica que aparece no lado “Noite” do teu disco, é algo que me soa novo, não estaria à espera de ouvir tal coisa num disco teu. Como é que isto entrou na tua música?
Isto tem a ver basicamente com o prazer em explorar alguns campos através de instrumentos virtuais, sequencers, eu gosto muito de música electrónica também e fiz aqui há uns anos um tema que só saiu em vinil, chamado “Grotesco”, era um tema muito inspirado numa onda mais ligada à música electrónica alemã e foi feito a partir de algumas linhas de sequencers, e ficou o bichinho de fazer coisas um bocado diferentes. Comecei ao ouvir muita coisa de spoken word, nova, de grupos até, os Fontaines DC também têm alguns temas falados, a Sinead O’Brien que é uma poetisa fantástica que tem uma onda entre a Patti Smith e a PJ Harvey, ter uma estrutura mais dura, mais ligada ao rock, mais derivativa e depois falar, dizer poemas por cima, isso é uma coisa que me começou a interessar… há também Billy Nomates, ultimamente tenho ouvido, coisas onde se pode pôr palavras sem ser em melodia cantada, sem ser o refrãozinho redondo, e fazer algo interessante com isso, libertar um bocadinho a forma e a fórmula da canção pop dessa maneira. O tema que depois saiu com o Rui Maia, que é o tema mais “single” do lado “Noite”, é um bocadinho nessa onda, tentar fazer um tema com uma letra que diga alguma coisa, ir no fundo roubar ao rap o que o rap roubou ao rock há muito tempo e não devolveu, que é a capacidade de fazer boas letras com alguma intenção mais ou menos activista.
Vais tocar ao vivo no Teatro Maria Matos [30 de Novembro], o concerto vai ser focado especialmente neste disco ou farás um best of?
Este é o clássico concerto de apresentação, é mesmo para ouvir o disco novo. Vou tocar algumas coisas mais recentes, a solo, não vou tocar nada de Delfins, nem sequer nada muito antigo meu a solo, vou até 2018 mais ou menos, não vou abaixo disso. Porque este é um espectáculo diferente, para conseguir casar os temas do lado “Noite” com os temas do lado “Dia”, teve que se estrear um espectáculo onde a imagem tem muita importância, onde a própria cenografia e encenação tem muita importância. É um espectáculo único, feito para o Maria Matos, se tudo correr bem e as coisas abrirem poderei replicá-lo a partir de Janeiro pelos auditórios e teatros portugueses, mas é um espectáculo feito para gente sentada, porque principalmente o lado “Noite” foi feito dessa maneira, para as pessoas, sensorialmente, irem tendo uma experiência um bocadinho diferente do que nos espectáculos de ar livre, pop, que faço habitualmente. O Rui Maia vai estar em palco, nalguns temas, os outros convidados também, o Co$tanza, o Pedro de Tróia vai lá cantar o “A Ver o Mar”.
Agora deixamos de lado a tua carreira a solo e regressamos à tua carreira com banda. Na tua opinião, por que é que a certa altura, algures no início do século, toda a gente passou a embirrar com os Delfins? Ficava bem dizer mal dos Delfins.
É natural que isso aconteça porque é um país pequeno, os Delfins tiveram uma exposição tão grande, aliada à minha exposição na televisão, em que fiz uma série de programas de televisão em que tinha quase 3 milhões de pessoas a ver. Aqueles dois discos venderam tanto, quer O Caminho da Felicidade quer o Saber Amar, passado um ano venderam meio milhão de discos, acho que foi uma coisa… ficou tudo assoberbado, nós andávamos lá no meio do turbilhão nem pensávamos muito nisso, dávamos tipo 110 concertos por ano, nem sequer tínhamos muito tempo para pensar no alcance daquilo, mas realmente foi tão grande, tão grande para o nosso país que é natural que depois haja uma ressaca. Nós se calhar também nos pusemos um bocadinho a jeito porque não seguimos a receita, podíamos ter ficado a fazer o mesmo estilo de música desde essa altura e estar ainda até hoje, cristalizar o grupo naquele som e continuar em pré-reforma a fazer música. Mas não o quisemos fazer e tentámos fazer coisas diferentes, que não resultaram comercialmente tão bem e acho que isso também fez com que essa moda de bater no ceguinho pegasse. Agora, é normal, depois houve um tipo do stand-up no Levanta-te e Ri que disse uma boca, o outro também disse, as pessoas riram-se, depois usavam isso até como uma muleta, «epá qual é a próxima piada, não me lembro da próxima piada, ah – Delfins». Agora, os grupos que têm essa exposição põem-se um bocado a jeito.
Para 2022 estão agendados concertos dos Delfins. Isto é uma reunião só para tocar ao vivo ou vem aí música nova?
Não, não, é tocar ao vivo, só. Além de concertos existirão jantares, sim, mas no fundo é uma celebração, o título destes espectáculos é mesmo esse, Celebração, vamos celebrar as nossas canções e aí sim, a nossa setlist será porventura uma setlist retirada directamente de 1996-97, vamos fazer aquilo de “give the people what they want”, completamente, com alguns elementos mais contemporâneos, em termos cénicos, em termos tecnológicos, mas vamos fazer um concerto de singles, a abrir do princípio ao fim, são espectáculos que terão início no Rock in Rio e depois já exstem uma série de datas, de que não posso falar mas vão ser mais de 2 ou 3. Mas será apenas isso, será um tempo em que vamos tocar ao vivo e depois faremos o último espectáculo e dizemos adeus. É apenas para celebrar as canções, não há nenhuma ideia de reatar a carreira, de escrever novas canções, não penso que faça muito sentido isso no caso dos Delfins.