Pouco se fala do ritmo quando se discute pop-rock, uma vez que o tempo na esmagadora maioria das músicas se encontra a quatro por quatro (4/4). É este o formato mais comum na música ocidental, e, para quem não sabe, signfica que se consegue fazer uma contagem no ritmo da música, de 1 a 4, recomeçando a contagem novamente sem que haja desfasamento. É curioso observar que muita da música folclórica espalhada pelo mundo fora tem ritmos muito mais complexos, da Roménia à Escócia, tornando-se demencial em algumas zonas africanas. Na tradição do sub-sahara cruzar os ritmos é o princípio, e torna-se extremamente difícil de seguir a música com o metrónomo. Foram precisamente os poli-ritmos africanos que influenciaram determinantemente Steve Reich, compositor (e, acima de tudo, percusionista) contemporâneo, cuja peça extraordinária 2×5 incluí nesta playlist e que ajuda a perceber o que isto é. Mas quero com isto dizer que o que se ouve hoje em dia é do ponto de vista rítmico muito mais básico do que há uns séculos atrás.
Não sou letrado em música mas sou do contra e apercebi-me rapidamente de como os ritmos assimétricos me seduzem desde criança ao observar os pisca-piscas de diferentes carros a luzidir quase ao mesmo tempo (mas a diferentes ritmos). Lembrei-me então de criar uma playlist de música pop-rock (mais ou menos) que rompe com a ditadura do 4/4. Ajuda-me a explicar-vos por exemplo por que gosto tanto de Radiohead. Espero que desfrutem da audição e, para aqueles menos atentos, que descubram o prazer da diversidade metronómica.
“Manic Depression”, Jimi Hendrix: um claro 3/4, ou, se quiserem, uma bela duma valsa perfumada a haxixe.
“Pipeline/Kill time”, Sonic Youth: paradoxalmente aquela que é a minha banda rock preferida (a um quilómetro de distância das outras) raramente fugiu do 4/4. Que me lembre, esta faixa do álbum Sister será uma das excepções, em que a maioria se encontra em 4/4 mas que entra e sai do 3/4 por 30 segundos. Mas atenção: a bateria e o baixo encontram-se a 3/4, ao passo que as guitarras estão a 4/4 – poli-ritmia o que torna esta secção da música (a seguir ao segundo 30), como dizer?, bem marada.
“Kashmir”, Led Zepellin: Eis uma outra valsa (maioritariamente em ritmo ternário), mas leitura atenta revela que a bateria se encontra em 4/4. Temos aqui também um poli ritmo. A música em si, como a maioria das músicas dos Zepellin, é um bocado melodramática e esta ainda para mais longuíssima, pelo que não a incluo na playlist. No entanto há que dar mérito ao virtuosismo dos seus músicos.
“River Man”, Nick Drake: ora aqui um 5/4. Dá agora para entender melhor por que é que esta música soa um pouco fora.
“My Wave”, Soundgarden: 5/4, e depois 4/4 no refrão. Na minha adolescência cheguei a preferir os Soundgarden aos Nirvana. Pareciam-me mais interessantes, mas sem perceber exactamente porquê e a coisa só esmoreceu porque a autenticidade dos Nirvana era incomparável. Escutando-os mais recentemente, na ocasião da morte do vocalista, apercebi-me por que são os seus álbuns um bocado invulgares – em muitas das músicas os ritmos não estão a 4/4.
“Last Exit”, Pearl Jam: durante anos não me me dei conta de por que é que gostava especialmente do Vitalogy, mas suspeito que tenha um pouco a ver com a entrada do álbum, até porque o resto na verdade não é brilhante. 5/4 no segmento mais pujante, passa para um mais melódico 4/4 no refrão, à la Soundgarden.
“Money”, Pink Floyd: 7/4. Simplesmente isto significa que se consegue contar até 7 e depois recomeçar sem quebrar o ritmo. Se experimentarem verificam que isto é válido quando existe a tão conhecida frase do baixo (que copia o som inicial da caixa registradora), no entanto quando entra o solo do Gilmour o ritmo passa a ser o tradicional 4/4.
“Spoonman”, Soundgarden: 7/8, excepto no refrão em que se torna 4/4. Não é isto precisamente que torna esta música especial?
“Let Down”, Radiohead: nunca dei muita atenção a estes ingleses até à primeira audição de Kid A. Tudo mudou deste aí, e não me parece que haja outra banda a trocar tanto as voltas com o ritmo. Esta “Let Down”, no entanto, é anterior e foi a primeira vez (penso eu) que os Radiohead incluíram um poli-ritmo, inadvertidamente: a música começa com uma frase da guitarra do Jonny Greenwood que está em 5/4, mas depois o resto da música entra meio descompassada a 4/4. Ao que parece, isto não foi inicialmente propositado, mas resultado de um erro na mesa de mistura que divertiu os músicos. A dificuldade de tocar esta música terá feito com que raramente fizesse parte do set list dos concertos. É o que consta e não consegui confirmar a teoria.
“Happiness Is A Warm Gun”, The Beatles: Os Beatles evidentemente também andaram metidos no negócio dos ritmos marados. A mais vincada será a “Within You, Without You” que inclui percussão na tradição indiana, e eu não consigo sequer decifrar o ritmo sem pelo menos rebentar uns milhares de neurónios, e ando a poupar, mas é evidente que na guitarra passa de 4/4 para 5/4. Já a “Happiness Is…” parece ser o mais óbvio exemplo de diferentes métricas. Até para quem não tem atentado a estas coisas sabe que é uma música com vários segmentos, como que pelo menos 3 músicas metidas numa só. Começa em 4/4, mas depois passa a 3/4 (I need a fix…um dois tres um dois tres), depois Mother Superior… cai a 9/8, voltando a 4/4, intercalado com um novo 3/4, etc. Marada!
“Paranoid Android”, Radiohead: uma das músicas pop/rock mais perfeitas de sempre, além de arrecadar o prémio de melhor video clip de todo o sempre. Metam lá a música e acompanhem-me na dissecação. Tem como frase principal algo com ritmo 8/8, que também pode ser lido como 4/4 (no entanto a frase só muda a cada contagem de 8 e é aí que reside a diferença). Mas a partir do minuto 2: bum bum babum bum bum bumbum BUM, quatro vezes, acompanhado por uma espécie de maracas. Ó depois silencia-se a maraca e entra o ritmo “descompassado” de 7/8, que causa aquela cócega percepcional de síncope arrítmica e que confere um carácter esquisito à música – na verdade o sentimento de que esta outra frase acaba ligeiramente mais cedo que a outra está correcto: conta-se até sete e não até oito. Depois desta fase da composição surge de novo o 8/8 (com o coro ao fundo, a languidez da guitarra acústica e da voz do Yorke). Termina a obra com o regresso da distorção da guitarra eléctrica e temos de novo a alternância entre as quatro frases de 8/8, 3 frases em 7/8, 4 frases 8/8, 3 frases 7/8 e a última em 8/8. Poderiam agora vocês, se estivessem atentos, perguntar qual a diferença entre 7/8 e 7/4, epá mas agora não vou por aí.
“Ful Stop”, Radiohead: esta inacreditável peça de dança tem um ritmo base de 4/4 intercalado com 2/4 (podendo soar portanto a 6/4), mas depois entra num tropeção a poliritmia com o drone (cujo ritmo será um múltiplo de 6) e depois surgindo a frase de guitarra mais aguda que sobe e desce e que se encontra em 3/4 (casando com o 6/4 composto). Avassalador.
“After the Flood”, Talk Talk: aqui vale a pena mandar um lol. Laughing stock: o álbum pop/rock (qualquer que seja a categoria em que se possa inserir aquilo que é único) mais genial de sempre, sem possibilidade de discussão. É uma bizarria enlouquecedora, todo ele polirítmico, mantendo ainda assim as mais belas das melodias e a languidez sonhadora do Mark Hollis. Escutando este trabalho fica-se com a sensação de se poder fechar a loja. Não vale a pena tentar nada mais. Enfim, somente a minha opinião, mas foi precisamente isso que Hollis fez – após a sua publicação, desapareceu da cena musical, para sempre, para surpresa de todos, e já lá vão 27 anos. Eu entendo-o. Escolhi esta faixa por ser a mais decifrável, metricamente. Após uma introdução sonhadora, entram as teclas (órgão, harmónica) e sopro (trombeta), longos, construindo uma frase que ascende a 10/8. A percussão está a 4/4. Qualquer engenheiro que se preze saberá que se pode dividir redondamente 10/8 por 4/4, logo é este um poli-ritmo que casa bem, sem a maluqueira de tropeção de outras faixas. Se se o ouvir sob a influência de uma bequinha de mdma, deitado a contemplar as rachas do tecto, garanto que se fica a compreender que estamos todos, sem excepção, sós. É isto a felicidade.
“Pyramid Song”, Radiohead: OK, chegamos então à música do Amnesiac que me fez levantar da cadeira quando a escutei pela primeira vez e murmurar, Que caralho de merda é esta foda-se? Encontrava-me no Algarve, sentindo-me miserável pois a namorada da altura tinha acabado de me trocar por um outro Sapiens, e ouvir isto fez-me perceber quão ridículos são os queixumes de amor quando se pode injectar música desta directamente na veia. Para aqueles que ainda estão a ler este texto: bravo. Se aqui chegaram então talvez tenham a curiosidade de espreitar o debate em torno da métrica rítmica desta música que se encontra na internet. Músicos juram que isto é 3/4, 9/8, etc. A conclusão parece ser um 8/8 – ver aqui – mas um 8/8 maradíssimo. Fosga-se.
“2×5: I. Fast”, Steve Reich: bom. Se fosse esta a música que andasse a pairar pelo espaço, ficaríamos com a certeza de que o alienígena que a apanhasse não tivesse dúvidas de estar perante uma civilização com a qual era preciso ter algum cuidado. Impossível para mim, comum mortal pouco instruído, decifrar os diferentes ritmos desta composição, ou sequer de acertar com a percussão durante mais de 3 segundos. Steve Reich é de longe o meu compositor preferido.