O grande legado dos Pavement é mostrar-nos quanta beleza pode haver no inacabado, no desleixado, no descuidado. Como uma miúda gira acabada de acordar.
É cool gostar de Pavement. A devoção a uma banda ignorada pelas massas e idolatrada pelos críticos faz-nos sentir especiais. O que é parvo, claro. Os Pavement sempre foram venerados pelas razões erradas. Fala-se da ética indie, da indiferença pela carreira, de nunca terem assinado por uma major. E daí? Quando os Sonic Youth e os Nirvana assinaram pela Geffen apanharam porventura peste bubónica? Não se reduza então os Pavement a uma qualquer bandeira moral. A sua indolência não é uma arma contra os bandidos das multinacionais; não é uma ética mas sim uma estética. O grande legado dos Pavement é mostrar-nos quanta beleza pode haver no inacabado, no desleixado, no descuidado. A voz displicente, os solos desengonçados, a crueza e espontaneidade da produção, os vídeos parvos no-budget, o vestirem-se com as primeiras t-shirts que encontram na gaveta, as letras “que se lixe”, criam um fundo de desmazelo que só faz brilhar ainda mais as inventivas melodias de Stephen Malkmus. Conte-se então a sua história.
Os Pavement em ’89 são apenas dois amigos de infância, instruídos e de boas famílias, infernizando a vida dos vizinhos: Stephen Malkmus e Spiral Stairs. Esclareça-se desde já a relação de forças: se Stairs for George Harrison, Malkmus será Lennon e McCartney. Conhecem Gary Young, que, apesar de bêbado e lunático, sabe manusear uma bateria.
As primeiras gravações pouco mais são do que ruído gratuito. Ouvir os seus primeiros EPs é uma contradição nos seus termos- são inaudíveis. O CD que mais tarde os compilará, Westing (by Musket and Sextant), tem um interesse apenas arqueológico. Só com muita persistência, escavando muitos metros cúbicos de barulho inconsequente, é que lá conseguimos desenterrar as pérolas “Box Elder” e “She Believes”.
Mas quando lançam em ‘92 o seu primeiro LP as coisas mudam de figura. Slanted and Enchanted é uma das grandes obras-primas do noise pop, com o açúcar das melodias a ser deliciosamente cortado com o limão do ruído. Quem não daria um dedo mindinho para ter escrito “Here”? Talvez os furtos aos Fall e aos Sonic Youth sejam excessivos. Mas lá está: “os bons copiam, os génios roubam.”
Gary Young está cada vez mais descompensado. Faz o pino nos concertos, arremessa salada ao público, o diabo a sete; tudo menos marcar o raio do compasso. Anda sempre bêbado, com uma espingarda na carrinha, para pânico de Malkmus e de Stairs. Naturalmente, acaba por ser corrido da banda. Angariam Steve West para a bateria, Mark Ibold para o baixo e Bob Nastanovich para as percussões. Um pouco de estabilidade, por fim.
Crooked Rain, Crooked Rain, de ’94, é já Pavement da cabeça aos pés. O melodismo pop de Malkmus, apenas latente em Slanted and Enchanted, é agora tão soalheiro que se recomenda o uso de protector solar. Onde S&E ignorava ostensivamente a tradição, Crooked Rain pisca o olho ao classic rock. As canções são ainda excêntricas, mais por culpa das afinações dissonantes à Sonic Youth do que pelas texturas noise de outrora. Ficam célebres as alfinetadas de “Range Life” ao ufano Billy Corgan. E o impossível acontece: a banda mais avessa de sempre ao jogo da indústria pop tem um pequeno êxito com a divertida “Cut Your Hair”. Cobain morre pouco depois. É então que as majors começaram a fazer contas: e se estes tipos fossem os novos Nirvana? Santa ingenuidade…
Em ’95, os Pavement gravam o seu disco mais desfocado e experimental- Wowee Zowee. Todos os singles são suicidas. Se o álbum é um manguito intencional ao sucesso de “Cut Your Hair”, ou apenas a expressão espontânea de uma nova sensibilidade, talvez nunca o saberemos. O que é certo é que o prolífero Malkmus está no seu pico criativo, parodiando metade da história da pop mas sempre soando a Pavement. Como conseguem que o hardcore e o country, o pós-punk e o glam, o no-wave e o classic rock saibam sempre a Pavement é um mistério ainda sem solução. O resultado é o seu White Album, e, para muitos, a sua obra-prima.
Brighten the Corners, de ’97, é um regresso ao melodismo popalhudo de Crooked Rain mas agora com afinações convencionais e sem merdices lo-fi; como se os Pavement quisessem provar, e provaram, que era possível manter o charme com o mínimo de bizarrias indie. Aliás, Brighten the Corners é mesmo o único disco dos Pavement sem qualquer canção menor. Destaque, é claro, para os icónicos “Stereo” e “Shady Lane”.
O único passo em falso é mesmo Terror Twilight, de ’99: porque é mais do mesmo, repetindo o molde estético do disco anterior; porque a produção de Nigel Godrich é demasiado polida e deslavada; porque alberga algumas canções menos inspiradas do que os lados B dos álbuns anteriores. Mais valia não terem feito o disco? Também não exageremos. “Spit on a Stranger” e “Major Leagues” são lindas de morrer, e “Carrot Rope”, a última faixa do último disco, tem todos os ingredientes de um final feliz. Só um único problema: já não soam a Pavement. As bandas, mesmo as maiores, têm um prazo de validade.Terror Twilight, sem uma única canção de Stairs, é, para todos os efeitos, o primeiro disco a solo de Malkmus.
Fica a obra e o legado. Nunca chegaram ao mainstream mas foram a banda de culto mais influente dos anos 90. Parquet Courts, Mac DeMarco e Courtney Barnett são alguns dos seus herdeiros. Não há como fugir. Onde houver melodia e desleixo, o espectro dos Pavement estará lá.