Memórias da música e do tempo. Uma criança adulta nas encruzilhadas dos caminhos da sua própria vida, face aos mistérios das canções.
Ontem, percebi que há momentos que fazem uma pessoa encontrar-se por dentro. A vida é um espelho que se vai tornando baço, por isso é bom quando o polimento da memória é chamado a intervir. Três vezes o verbo Ser numa frase já quer dizer alguma coisa…
Ontem, chegou até mim um pouco do meu passado e mais não pude fazer do que olhá-lo de frente, fixamente, lucidamente, rangendo o tempo entre os dentes. Assim vos digo que quem ficar até ao fim deste texto constatará duas coisas muito simples e óbvias, em igual medida: que os fios das lembranças são reveladores de momentos há muito afastados de nós mesmos, e que, por mais que tentemos, o passado teima em habitar-nos de muitas e indizíveis maneiras, pelo que talvez não adiante passar os olhos para lá desta linha. É sobre mim, esta escrita. Só a mim me diz respeito. Dela talvez só entendam o que as palavras dizem, e isso é sempre muito pouco, quase nada.
Ontem, a música pôs-me de calções e borbulhas na cara, levou-me ao mesmo espaço onde na noite passada estive a ouvir o Ofertório de Caetano, Moreno, Zeca e Tom. De repente, a voz de José Nuno Martins, mais do que dizia, suspirava um “Ai, música!” que ficou até hoje a dançar exclamativamente nos meus ouvidos. Era assim que tudo começava. Foi assim que ouvi e vi desfilar todos os meus heróis da música popular brasileira (quase todos, enfim, quase todos), mas muito mais do que todos, um: Caetano Emanuel Viana Teles Veloso. Ele tinha quarenta e poucos, eu era quase recém nascido para as artes maiores da música. Foi ele quem me deu as “Boas-Vindas” (“boas vindas, boas vindas, venha conhecer a vida”) e foi essa tua presença antiga que ontem se sentou ao meu lado, como velhos amigos, de violão na mão para comigo cantar “eu digo que ela é gostosaaaaa”, numa imensa “Alegria, Alegria” sem fim. Logo tu, que “és um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho”, apesar de ter dois ainda mais lindos do que os teus três, mas isso tu não sabes, e como pouco importa, estás desculpado.
Ontem, a música fez-me viver momentos de paz e amor (“o seu amor, ame-o e deixe-o, ir onde quiser, ir onde quiser, ir onde quiser”) durante boa parte da noite e dos dias da minha juventude. Éramos sempre alguns, mais do que uma mão cheia, eu entre meninas, raparigas “brilhando estrelas na noite” como as que cantávamos celebrando a nossa “Gente” (“Marina, Bethânia, Renata, Dolores, Suzana, Leilinha, Dedé”), até porque “cantar é mais do que lembrar”, sobretudo quando “a voz de alguém que canta” me fez recordar “quem mantém toda a pureza da natureza” numa qualquer “franja da encosta cor de laranja” do passado. Por sua vez, como são muitas as interseções da memória, debrucei-me “na janela lateral do quarto de dormir” nos mil tons de Milton (eu avisei que eram vários e bons os meus heróis) e “vi um menino correndo” em direção ao presente, já sem calças, sem borbulhas, de olhar cândido e enternecido.
Ontem, a música (“música, música, companheira do quarto dos rapazes”, da também baiana Simone, no tempo em que não existia estrela na ponta do i da primeira sílaba do teu nome) foi uma “Força Estranha”, tão estranha que me fez sonhar com o “fogo das coisas que são” parte fundamental de mim, tijolo e forma do que fui e do que sou, “olhos, boca, narinas e orelhas”.
Ontem, a verdade é que “havia um mistério plantado no ar”! Um pai, três filhos e um espírito santo que passou por mim.
Eu avisei que era escusado ler este texto até ao fim, mas a memória também me ensinou que contra a teimosia pouco ou nada vale a pena. Só mesmo “a tua presença morena, morena, morena, morena, morena, morena, morena”.