Porque precisamos de deuses e de mitos, Hendrix sacrificou-se por nós, imolando a sua guitarra no fogo de Monterey. Nesse instante, tornou-se eterno.
Estamos em 18 de Junho de 1967, em pleno “summer of love”. Decorre o terceiro dia do Monterey Pop, o primeiro grande festival de rock. Monterey não é só um statement hippie de celebração das “flores e do amor” (pai espiritual do vindouro Woodstock). Para os organizadores do festival, Monterey representa também a mais do que merecida validação do rock enquanto forma de arte (à semelhança do que sucedera antes com o jazz e a folk). Mas para muitas das bandas a agenda é bem mais prosaica: Monterey é a montra que lhes permitirá ou não entrar no mercado americano.
Hendrix já havia conquistado Inglaterra: Are You Experienced só não chega ao topo porque um tal de Sgt. Peppers se intromete no caminho. No entanto, Jimi permanecia um perfeito desconhecido no seu próprio país. Os Estados Unidos sempre tiveram esse condão de ignorar as gemas da casa, especialmente quando entra em jogo o infame factor racial. Hendrix esteve anos como músico de retaguarda de grandes nomes do circuito R&B (Little Richard, Wilson Pickett, Sam Cooke, The Isley Brothers), sempre encapuçado na mais anónima obscuridade. Estas estrelas não admitiam que ninguém lhes roubasse o protagonismo. Além disso, desprezavam a heterodoxia de Jimi: demasiada loucura, demasiado ruído e feedback. Numa América estupidamente compartimentada em porções de melanina, o estilo de Hendrix era demasiado branco para os negros, demasiado negro para os brancos.
Os ingleses não padeciam desta parvoíce e ainda bem. Quando Linda Keith (então namorada de Keith Richards) assistiu a um concerto de Hendrix num bar em Greenwich Village, ficou deslumbrada com o seu génio. O seu amigo Chas Chandler também. Chas tinha acabado de sair dos Animals e procurava uma carreira como manager e produtor. Não pensou duas vezes, convidando Hendrix para uma carreira em Inglaterra. Jimi aceitou de imediato. Não só não tinha nada a perder, como era em Londres que se encontrava a aristocracia dos guitarristas de rock: Eric Clapton, Jeff Beck, Pete Townshend. Mal sabiam eles que o seu reinado estava prestes a acabar.

Já no Reino Unido, Chandler impinge-lhe o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchel como comparsas, baptizando a banda como The Jimi Hendrix Experience. O power trio faz furor nos clubes londrinos. Os Beatles e os Stones encontram-se na primeira fileira de fãs. Serão Paul McCartney e Mick Jagger, na qualidade de organizadores do Monterey Pop, a exigirem o nome de Hendrix no cartaz. Ao lado dos Who.
Não obstante a amizade que unia Hendrix à trupe dos Who, havia também uma relação de rivalidade: ambos queriam, com todas as forças, conquistar o público americano. Para mal dos seus pecados, logo foram calhar na mesma noite. Resultado: nenhuma das partes queria actuar a seguir à outra, com medo de serem eclipsados. A contenda teve que ser resolvida lançando-se uma moeda ao ar. Pete Townshend suspira de alívio: actuariam primeiro. Hendrix fica, naturalmente, receoso.
A actuação dos Who foi incrível e o seu final- apoteótico: explosões, destruição furiosa das guitarras, num poderoso statement de raiva adolescente. Apesar da violência (muito pouco consentânea com o clima de paz e amor reinante em Monterey), o público adorou. Jimi engoliu em seco, mal prestando atenção à actuação seguinte dos Grateful Dead. Até que, por fim, Brian Jones dos Stones anuncia a sua entrada: “I’d like to introduce a very good friend, a fellow countryman of yours. A brilliant performer, and the most exciting guitarist I’ve ever heard- the Jimi Hendrix Experience.” Estaria Jimi à altura?

Hendrix sobe ao palco e o público fica logo intrigado pelo seu exuberante visual: calças à boca-de-sino vermelhas, camisa com folhos laranja, casaco com todas as cores do arco-íris, uma bandana a prender a sua majestática cabeleira afro. Quando Hendrix ataca o riff de “Killing Floor” (velho clássico blues de Howlin’ Wolf), os espectadores ficam ainda mais estarrecidos: nunca tinham ouvido música num volume tão elevado, nunca tinham sofrido tanta distorção e feedback, nunca tinham presenciado tanta fluidez e intensidade. O que mais impressiona não é tanto a técnica (fabulosa) mas a absoluta espontaneidade. Era como se homem e guitarra fossem um só.
Como quem diz “também sei escrever canções”, Jimi interpreta de seguida um tema original: o funky “Foxey Lady”, incrível explosão de ruído e sensualidade. O público fica boquiaberto com os seus truques circenses: tocando com os dentes e com a guitarra atrás das costas, parecendo, por vezes, que a sua Stratocaster preta ganha vida própria e toca sozinha. Hendrix aprendera estas artimanhas quando palmilhava o circuito R&B mas era a primeira vez que um público maioritariamente branco assistia a tais desmandos. Aliás, esse é um dos segredos do sucesso de Hendrix, a fusão descomplexada de tradições: a negra e a branca, o blues e a pop.
Hendrix abranda o ritmo com uma bonita versão de “Like a Rolling Stone”, terna homenagem ao Dylan de quem tanto gosta. E esta dinâmica temas a abrir / temas mais calmos vai pautando o concerto, com a plácida “Hey Joe” acalmando o frenesim de “Rock me Baby”, e a serena “The Wind Cries Mary” antecipando o festim psicadélico de “Purple Haze”.

Mas o melhor estava guardado para o fim. Jimi troca de guitarra, agora uma Stratocaster vermelha, pintada à mão pelo próprio (com flores e corações rabiscados sob um fundo branco). Enigmaticamente, anuncia ao público: “I must sacrifice something I love. There’s nothing I can do more than this”. E os três acordes do clássico “Wild Thing” assomam granulosos. No final, pousa a guitarra no chão, com o feedback ainda a ressoar. Vai buscar uma lata arrumada aos pés de um gigantesco amplificador Marshall e esguicha um líquido para cima da guitarra. Depois, beija-a com ternura, como quem se despede pela última vez da mulher amada. Jimi acende um fósforo e atira-o. Uma enorme labareda começa a consumir a sua querida Stratocaster. Ergue as mãos para cima, como se fosse este seu gesto que fizesse magicamente crescer o fogo. Com a guitarra ainda em chamas (talvez um espelho do horror do Vietname), esmaga-a com violência contra o chão (e o ruído ensurdecedor do feedback continua a ecoar- quem sabe, os gritos da longínqua guerra). Jimi atira os restos mortais para o público. A maior parte das caras está ainda petrificada, aturdidos com o dramatismo de todo o rito sacrificial. Só quando Hendrix abandona o palco é que o transe acaba. Aplaudem, por fim, o deus acabado de nascer.
O público não o sabe ainda mas está a viver o momento mais icónico da história do rock. Precisamos de mitologias, especialmente agora que as religiões perderam a influência de outrora. Nas sociedades seculares, é a cultura pop a grande geradora dos mitos modernos. Abraão quis sacrificar a Deus o seu querido filho Isaque mas, depois de Elvis, quem tem ainda paciência para ler a bíblia? Jesus sacrificou-se na cruz para redimir os nossos pecados mas há muito que os Beatles são mais conhecidos do que Cristo (como o próprio deus Lennon um dia o anunciou). Para preencher este vazio mitológico, Jimi sacrificou em nosso nome o seu bem mais precioso.

Talvez Hendrix recordasse longínquas memórias enquanto a sua guitarra ardia. Na sua infância duríssima, negligenciado por pais alcoólicos e abusivos, encontrava refúgio numa vassoura, agarrando-a como uma guitarra imaginária. Nesses tempos de miúdo pobre, esquecido pela sorte, tocou as suas primeiras melodias na única corda de um ukulele encontrado no lixo. Quando, infelicíssimo, cumpria o tédio do serviço militar, implorou ao pai para que lhe enviasse por correio a sua saudosa guitarra. Quem privou com Jimi, conta que era inseparável da sua guitarra, cozinhando com a mesma a tiracolo, adormecendo com ela a seu lado.
Aquela Stratocaster linda de morrer ardeu naquela noite mágica. Três anos depois, foi a vez do próprio Jimi nos abandonar. Mas o mito Hendrix, imolando nas chamas o seu bem mais precioso, sacrificando-o por amor à arte e à humanidade, esse nunca morrerá.