Um simples disco é também, e necessariamente, as suas capa e contracapa. Pelo menos para mim. É, muitas vezes, o primeiro contacto que tenho com a obra, e a isso nunca fiquei indiferente. O disco enquanto objeto gráfico, enquanto suporte imagético e visual, pode ser observado de múltiplas formas. Gosto de as admirar, tentando encontrar nelas (na capa, sobretudo) alguma intenção de diálogo com o que venho a descobrir no seu interior, nas melodias ou nas letras das canções que habitam lá por dentro. No caso particular do terceiro longa duração dos Mutantes, várias são as razões para um olhar atento e fino. Foi isso que aconteceu comigo durante anos, e nesse longo tempo fui descobrindo nelas (capa e contracapa) motivos suficientes para entender melhor o seu interior. Em A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, trabalho que veio a público em março de 1970, a banda mostrou que até através do invólucro do disco poderia fazer-se história. E assim foi. Ambas as imagens dizem bastante acerca do álbum, desde logo pela ilustração do Inferno de Dante, fotografado em pleno jardim dos manos Baptista, e pela cena em que Rita Lee se deixa acompanhar pelos ditos irmãos, todos deitados numa cama de casal, observados de perto por Dinho Leme, o baterista da banda, em negro uniforme militar, enquanto toma uma chávena de café. Os Mutantes não estavam brincando ao utilizarem essas imagens. O duro período ditatorial que o Brasil vivia nessa altura, não deixa de estar bem patente nas imagens escolhidas. Mas falemos um pouco do disco e dos predicados que fazem dele, na minha modesta opinião, o melhor disco que a banda paulista fez em toda a sua existência.
Os primeiros segundos de “Ando Meio Desligado” são tão importantes, que por causa deles já se fizeram bandas e se construíram carreiras dignas de registo e muito respeito. Dois exemplos que bastante devem à canção e ao disco em causa são os Pato Fu e os recentíssimos Boogarins. Pode parecer-vos exagerado o que digo, mas não andarei muito longe da verdade, garanto-vos. Os versos “Eu nem vejo a hora de lhe dizer / Aquilo tudo que eu decorei” parecem-me perfeitos para enquadrar o que pretendo dizer. A canção é, sobretudo, um clássico que produziu outras canções e bandas igualmente importantes e clássicas. Apesar de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado ser um disco bastante mais experimental do que os anteriores, alguns dos bons vícios do passado ainda estão nele bem presentes, como a ironia e um certo sentido composicional algo surrealista. “Quem Tem Medo de Brincar de Amor” ou “Meu Refrigerador Não Funciona” são temas exemplares, a propósito do que afirmo. Para além da faixa de abertura (a já mencionada “Ando Meio Desligado”), o disco conta com outras enormes canções como “Ave, Lucifer”, “Desculpe, Babe”, “Hey Boy” (com uma letra fantástica, que tão bem retrata satiricamente um certo espírito da juventude endinheirada e playboy da época) ou “Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo”. Para além desses temas, a delirante brincadeira feita com “Chão de Estrelas”, antiga canção de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, é outro ponto alto do disco, assim como as poderosamente estranhas “Haleluia” e “Oh! Mulher Infiel”. A banda era já um quinteto, e as presenças de Dinho, mas sobretudo de Liminha foram marcantes para a virada de estilo que a banda iniciou a partir deste álbum.
Julgo evidente que este terceiro longa duração dos Mutantes é um passo seguro num certo afastamento da vertente tropicalista que a banda perseguia até então. O caminho a seguir parecia ser outro, e a esse respeito a já citada “Meu Refrigerador Não Funciona” parece-me ser uma canção marcante. Num primeiro momento (a canção tem quase seis minutos e meio de duração) as teclas de Arnaldo tomam conta do ambiente, ao mesmo tempo que uma Rita Janis Lee Joplin explode em poderosos vocais, sendo depois substituída pela voz de Arnaldo, com igual fervor, não esquecendo o sax supremo que também anda pelos ares lá mais para o fim do tema. No fundo, e para ser mais exato, o que nascia aqui era uma aproximação ao rock progressivo que alguns dos álbuns seguintes iam testemunhar com maior proveito, mas com menor sentido imaginativo, se comparados a este fabuloso A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado.