Tame Impala não é uma banda. Pelo contrário, todo o opifício de estúdio é pensado, composto, tocado, cantado e produzido por Kevin Parker (com raras ajudas no departamento do “tocar”), multi-instrumentista australiano responsável por dois álbuns (Innerspeaker, de 2010, e Lonerism, de 2012) que revitalizaram o rock psicadélico para o novo milénio com uma produção infimamente (e quase que impossivelmente) detalhada, subtilezas atrás de subtilezas e mudanças miúdas sempre à espreita. A impressão de que estávamos a ouvir uma banda milagrosamente sinergética e muito bem oleada é prova da mestria e brilhantismo de Parker no estúdio. Composições caleidoscópicas, malhas mirabolantes, sons surreais. Íris refulgente de mil cores fixando o olhar naqueles que no passado também nos fizeram viajar, cosmos fora.
Tudo isto se confirma em Currents. Todavia, uma excepção se apresenta, essa que será o calo no sapato de muitos, que agora presumo ex-fãs: íris essa fita agora não o cosmos, mas uma bolha de espelhos num clube que só passa Tears For Fears (o ritmo e os sintetizadores de “The Moment” lembram, se calhar até demais, “Everybody Wants To Rule The World”), Human League ou Eurythmics. E às vezes, Bee Gees. Se calhar, uns Duran Duran. Vá, também deve dar um tempinho de antena ao pessoal que venera desesperadamente essa era. E por breves minutos, o Rei da pop também aparece para fazer a festa.
Será, portanto, um exercício inútil comparar Currents aos dois trabalhos anteriores. Enquanto que Innerspeaker e Lonerism são álbuns de rock psicadélico (sendo que Lonerism já piscava fortemente o olho à pop, quer nas influências do seu criador dizia terem sido preponderantes na criação do mesmo, quer em algumas canções, onde refrões chegavam a ser repetidos 9 vezes), Currents é um álbum de pop psicadélica com uma forte influência de música electrónica (essencialmente Daft Punk) e da pop 80s dançável, com algum r&b (“Cause I’m a Man” seria uma faixa de Thriller se Jackson tivesse tomado outro tipo de medicamentos) e ritmos rap à mistura (o trap subtil no início de “Love/Paranoia”, a batida de “Past Life”). É um álbum com intenções muito diferentes dos anteriores, mas com o mesmo propósito: pegar no que já feito e moldá-lo com o intuito de, não importa quantas vezes escutemos, nos oferecer sempre algo novo.
Quem diz que Currents não possui a irrequietude sónica dos álbuns anteriores claramente não ouviu com a devida atenção: Parker nunca cai no típico verso/refrão/verso/refrão/ponte/refrão, mesmo que tal possa aparentar a alguém que tenha sentido repulsa pelo som de Currents (é compreensível, mesmo que disparatado: pop über-saturada não será everyone’s cup of tea) ou não passado o tempo necessário para o desabrochar do que é, no fundo, pop incrivelmente pormenorizada e aventureira.
Para o desconsolo de muitos (pobres coitados), a guitarra passa para segundo plano em Currents, um disco dominado pelos sintetizadores. Apesar do seu papel reduzido, Parker agracia-nos com a sua vontade incansável de oferecer novos tons e vidas à guitarra, verificando-se uma apetência fora do comum para a transfiguração pelos efeitos. No final de “The Moment” aparece-nos tão comprimida que a julgamos um sintetizador, a forma como se revela, esvoaçante e de melodia certeira, por entre um bombo e estalares de dedo em sincronia perfeita, é um dos inúmeros momentos de experimentação sónica que merecem toda a louvação e elogios possíveis. Em “The Less I Know The Better”, surge-nos brincalhona, liderando a faixa com um groove funk-disco muito brincalhão, diga-se até, cromo (“dorky” nas palavras do autor). Impõe-se como uma ferramenta rítmica colossal (literalmente: ouçam e perceberão) em “Eventually”.
E por falar nessa faixa, será intrincado perceber cada mudança rítmica, a fusão perfeita do baixo/bateria num pára-arranca serpentino que se repete incessantemente sem ser repetitivo, de “Eventually”. O seu refrão magistral e instantaneamente memorável, a intrusão hiper-melódica de instrumentos que há 30 segundos lá não estavam: Parker permite estes meandros maravilhosos sem nunca perder o foco – um artífice pop de primeira água.
Artifício esse transparece igualmente na faixa introdutória. “Let It Happen” é um colosso pop, um manifesto musical de 7 minutos que anuncia a mudança (bem-sucedida) dos Tame Impala: batida marca minuciosamente um passo de dança, a guitarra aparece como que vítima de um glitch tecnológico – a electrónica dançável como matriz basilar; o vulto dos Daft Punk bem presente, Homework e Random Access Memories num mede-forças, a ver quem toma controlo da faixa – um choque permanente, uma fusão perfeita; uma armada de sintetizadores que a certo momento se camufla de orquestra (poderá, nas mãos de Parker, um teclado ser violino?); na guitarra comprimida um groove digno de todas as pistas. Um single (o primeiro a ser lançado) corajoso, de escuta desafiante. E haverá algo tão orelhudo como o refrão de “Reality In Motion”? O ouvido do homem por detrás de “Apocalypse Dreams” para melodias e refrões é prodigioso.
Ideias por detrás de ideias, movimentos inesperados em todas as faixas. O momento menos aventureiro e conformista de todos será “Cause I’m A Man”, mais um exercício de estilo para homenagear o homem de “Lady of My Life” do que propriamente uma inserção incontornável no cânone Impalesco. Kevin Parker mostra-se um gigante da produção, até nos interlúdios/faixas de duração reduzida evidencia a sua mestria: a mudança, ao som de um clique, de gravação lo-fi para alta-fidelização em “Disciples” (pormenor delicioso a fazer lembrar as flutuações de qualidade das cassetes VHS); os sintetizadores que destoam e cambaleiam por breves segundos em “Nangs” – faixa de um hipnotismo notável. Os teclados cobrem as paisagens melódicas deste disco como a mais rica das tapeçarias, obrigando-nos a re-escutar vezes e vezes e vezes sem conta.
Tudo soa maior que a vida, pronto a encher estádio. Épico que não sacrifica a finesse. Arrebatamento de uma escala desproporcional que não desleixa o pequeno devaneio psicadélico. Um ímpeto comanda Parker, inédito entre os seus pares, pela busca incessante de algo nunca ouvido, mas já conhecido. Aí reside a singularidade de Currents.
Alguns vão ficar à porta desta festa. Aos outros, sejam bem-vindos à inauguração de uma nova etapa num dos projectos mais excitantes da música psicadélica.