Ao segundo capítulo, os Mirror People revisitam com mestria a synthpop dos anos oitenta. O futuro nunca nos soube tão nostálgico…
Tempos houve em que o rock e a música de dança eram dois mundos à parte, sem qualquer outro ponto de contacto que não o do mútuo desprezo. Em boa hora, Madchester mudou as regras do jogo, de maneira que ninguém hoje estranha que Rui Maia seja ao mesmo tempo teclista de uma banda de rock (os X-Wife) e mentor de um projecto de música electrónica (os Mirror People).
O alter-ego electrónico de Rui Maia estreou-se em 2015 com Voyager, uma feliz revisitação dos sons disco, um pouco na linha Cansei de Ser Sexy ou do último álbum dos Daft Punk. Dois anos volvidos, não são só as texturas saborosas que permanecem; é também o revivalismo electrónico, desta vez dirigido à synthpop e new wave dos anos 80.
O exercício nostálgico de Bring the Light (desta feita, com voz e letras de Jonny Abbey) manifesta-se, desde logo, no recurso ao equipamento analógico da altura: sintetizadores, vocoders, caixas de ritmo. Mas o saudosismo vai mais longe. É o próprio espírito da época, no seu culto do artifício e do prazer, que é recuperado. Num cenário sempre noctívago e citadino, melodias tão frescas e “descomplicadas”, como divertidas e maliciosas, reproduzem na perfeição a simplicidade hedonista de uma pista de dança. Parece simples mas não é: suspeitamos complexos os caminhos criativos que conduziram a tão depurada frivolidade.
Esta regra da superficialidade glamourosa tem duas ilustres excepções, sugerindo que até a boémia nocturna poderá ser mais espessa do que julgamos. A primeira é a própria canção-título, faixa sombria e agressiva, cuja perversidade obsessiva não andará muito longe dos hábitos estéticos de uns !!! ou de uns Rapture. A segunda é “Taste of Murder”, tema espiritual, quase filosófico, que pelo seu sentido de viagem e futurismo evoca os próprios pais da electrónica- os Kraftwerk.
Embarcados numa nave espacial sonhada com os contornos de há mais de quatro décadas, este grande disco oferece-nos um terrível paradoxo: a nostalgia por um futuro maravilhoso, que afinal nunca chegou. Trágica época a nossa, onde até o futuro não passa de vã recordação.