Miles Davis é um monstro. Um monstro no sentido mais catártico, mais furioso, mais destrutivo e feroz que se possa imaginar, um monstro saído de uma fábula para crianças, com filas e filas de dentes aguçados e cujo grunhido faz estremecer ilhas imaginárias inteiras. E pensam: um monstro? Aquela figura à qual nos tinha vindo a habituar durante os últimos anos de vida – um velho reptílico, sem voz, magro como um esqueleto, vestido de cores berrantes que pouco ou nada faziam jus à nuvem de melancolia que o parecia acompanhar, a cara escondida por detrás de uma máscara de óculos escuros?
Um verdadeiro monstro. Não existem mais palavras para o descrever um homem que, ao longo dos seus sessenta e cinco anos de vida, passou cinquenta deles a fazer música – a fazê-la de forma exaustiva, disparando álbum após álbum (quarenta e oito, ao todo, mais precisamente) a um ritmo galopante. Fazer música talvez seja um eufemismo para o que era capaz quando metia os lábios na trompete. Não só a fazia, como a inovava, reinventava, desafiava e esmiuçava, com uma agilidade de leopardo que o permitiu saltar de género em género ao longo de toda a sua carreira sem nunca ficar para trás. Do bepop para o cool, do rock para o funk, não havia território musical que não conquistasse, armado com a trompete em riste sempre pronta para disparar.
Entre as resmas e resmas e discos que nos deixa (empilhados devem fazer o tamanho de uma pequena criança), há um em particular que parece expor mais do que todos a sua monstruosidade – do tamanho de quem engoliu todas as crianças no mundo.
Passava-se o verão de 1969. A criatura, com fome de musicar, capturou para o seu covil alguns outros gigantes do mundo do jazz (entre eles, John McLaughlin, Chick Corea e Wayne Shorter) arregaçou os dentes e mandou-os tocar. E assim o fizeram durante três dias, contando com as mínimas indicações – o homem da trompete na mão fora gentil o suficiente para lhes fornecer o tempo, algumas notas e uma melodia primária. Em pós-produção, afinou-se o produto – um processo que foi particularmente controverso devido aos dois ou mais dedos de tecnologia que contribuíram para o resultado final – e nasceram noventa e quatro minutos de pura monstruosidade musical – um disco confuso, eléctrico, uma verdadeira e espantosa aberração de som.
Não há como negar o apelo de Bitches Brew. Numa época em que o jazz receava uma queda vertiginosa na sua popularidade, e tentava desesperadamente reinventar-se vestindo as peles de outros géneros musicais – surgindo assim os míticos esforços de jazz fusion e jazz avant-garde futurista – a criatura conseguiu obliterar tudo em seu redor mais uma vez, com a trompete fechada nos dedos. O mundo estava a ouvir algo completamente novo. Não é algo que se possa afirmar todos os dias. O planeta vibrou imediatamente e não deixou de vibrar quarenta e cinco anos depois, músicos e músicos citando este trabalho em particular como uma das suas maiores influências (até Thom Yorke atribui ao disco a inspiração para Ok Computer).
Bitches Brew não deixa de ser, no entanto, uma monstruosidade de disco, o mais monstruoso da criatura e dos mais monstruosos que temos no nosso mundo – sempre bizarro e até aterrador, por muitas vezes que tentemos domesticar os seus urros através de audições repetidas. Bitches Brew não é orelhudo, aliás, é mais o contrário de orelhudo. Os temas prolongam-se demasiado, o número de instrumentos presentes em cada um é avassalador, assim como o número de gente em torno da mesa a contribuir com ideias – é um disco nascido de excessos, um disco selvagem e sem dono.
No entanto, é a sua maravilhosa, fascinante e encantadora estranheza que nos atrai. Ainda hoje continua a puxar-nos com toda a sua loucura delirante. Ao longo de cinco estrondosas faixas, desde a aterradora “Pharaoh’s Dance”, passando pela espampanante “Spanish Key” e a sedutora faixa final, “Miles Runs The Voodoo Down”, é-nos feita uma cama para nela gozarmos pesadelos deliciosos. Gostando ou não, entranhando ou nunca chegando a enfiar-se dentro do ouvido, há que admitir: é um monstro de disco, por um monstro de músico. Hoje, e para sempre.