MAR-VEL-LI-MA. Decorem já o nome esquisito que estes putos de Beja são maravilhosos. A sua essência é o rock psicadélico vintage, mas, em vez de serem mais um clone dos Tame Impala, têm uma identidade muito própria, temperando a viagem psicotrópica com funk e sabores latinos.
Os dois singles são grandes malhas pop, com melodias certeiras e luminosas, que ficam instantaneamente a bailar no ouvido; publicidade enganosa, já que o tom dominante no álbum é o oposto: temas bizarros e sombrios, com uma alergia profunda ao formato-canção. Os timbres são exóticos e irreais, alucinações induzidas por ácidos, ou pelo sol a pique de Beja no Verão. As teclas soam líquidas, escorrendo lânguidas sem forma fixa, moldando-se aos contornos da nossa imaginação. A guitarra envolve-nos numa langorosa neblina, como se tudo fosse um vaporoso sonho…
Não é um sonho agradável. As harmonias lúgubres e dissonantes desenham a carvão o pior dos pesadelos. É um psicadelismo negro, que nada tem a ver com o éden de paz e amor sonhado pelos hippies. A metáfora certa é a bad trip: a loucura, a fragmentação do eu. A canção que é mais explícita a este respeito chama-se, justamente, “Demência”. O tema começa sereno, representando a lucidez ainda intacta; até que as teclas assomam, trémulas, anunciando o início da derrocada. A partir daí, a desorganização mental vai subindo, num crescendo, até à insanidade absoluta, numa articulação perfeita entre forma (sonoridades excêntricas e aflitivas) e conteúdo (o tema da loucura).
Por todo o álbum, aparecem congas e palavras em castelhano. É que a angústia que atravessa o disco não acontece num vazio; ocorre numa geografia particular, a América Latina; não a postiça das telenovelas mexicanas e dos vídeos tontos do Ricky Martin, mas a autêntica, a carnal e violenta, a visceral e desmedida. Não havendo nunca um convite formal a outras referências pop deste universo, elas acabam por aparecer de qualquer maneira, aproveitando a porta deixada aberta: Manu Chao e seus mexicanos de Tijuana, entornando-se em “tequila, sexo y marijuana”; os GNR e a sua puta Juanita, “the puerto rico girl, she’s only 15 but she’s learned a lot, she licks, she sucks, que maravilla”; Pablo Escobar caindo de um telhado de Medellín para a nossa sala de jantar, ensopando de sangue o tapete novo do IKEA…
Se esta viagem é alucinatória e perigosa nas ambiências que convoca, ela é controlada e precisa no que concerne à produção musical. Absolutamente nada é deixado ao acaso. Os devaneios psicadélicos são programados ao milímetro, de modo a que todos os sons sejam audíveis e cristalinos. Cada um dos músicos é de uma economia espantosa, colocando só as notas essenciais, para sobejar espaço para todos.
Se quase tudo neste disco nos faz voar, tentando, por todas as forças, estilhaçar a nossa mente em mil pedaços, a poderosa secção rítmica – bateria, percussões latinas e baixo- cria um centro de gravidade de tal forma forte, que somos sempre puxados de novo para terra firme. Neste disco brilhante, somos conduzidos para um limiar muito próximo da loucura, mas nunca o chegamos a ultrapassar. Ainda bem. Com a sanidade imaculada, podemos então regressar às nossas vidinhas, e fingir que tudo não passa de um grande e estranho sonho…