Não é difícil perceber que o disco The Epic, de Kamasi Washington, possa ser entendido como um trabalho em contracorrente, completamente à margem da feérica ordem que rege os nossos tempos: a pressa! Primeiramente, por ser um álbum longo, longuíssimo, e poucos serão aqueles que quererão dispor de quase três horas do seu precioso tempo para o ouvir condignamente. Sendo que, para mais, três horas não chegam, e são só o começo para muitas outras, se se ousar perder (leia-se ganhar) tempo, o tal que passa a correr e nos leva para caminhos e lugares que, sendo mais imediatos, são também, tantas vezes, espaços áridos, vazios de algo verdadeiramente substantivo que nos convença a permanecer neles com agrado. Depois, por haver neste The Epic um certo sabor a transcendência, coisa que pouco ou nada colhe nas vidas frenéticas que levamos. Finalmente, será bom perceber que para se ouvir e gostar deste triplo disco de Kamasi Washington, é necessária uma boa dose de tranquilidade de espírito, bem como uma ainda maior porção de resiliência, uma vez que haverá, inevitavelmente, no percurso dos seus 17 temas, momentos de alguma adversidade auditiva, e consequente necessidade de superação dessas inconveniências. É necessário, portanto, encher o peito de ar, e avançar…
Kamasi Washington é (ainda) um ilustre desconhecido das grandes massas, do grande público, um homem que anda pelos terrenos do jazz e de outras músicas há já algum tempo, mas que só agora decidiu ajustar contas com o seu passado, assumindo o presente em nome próprio. Já é mais um veterano do que um rookie. Colaborou com Lauryn Hill, Snoop Dog, Chaka Khan e Kendrick Lamar, por exemplo, o que, a avaliar pelos nomes em causa, seria merecedor da minha (quase) total indiferença. No entanto, mesmo sabendo que a frase anterior poderá fazer com que alguns leitores já não estejam a ler o que escrevo agora, também é verdade que poderei voltar a ter quem me leia, ao acrescentar outros artistas com quem Washington já trabalhou, como são os casos de Herbie Hancock, Wayne Shorter e Kenny Burrell. Na verdade, o que importa agora é dizer que The Epic encerra e compacta muito daquilo que o jazz foi produzindo ao longo de inúmeras décadas da sua gloriosa existência. Daí que, por ser um disco que assume a história do género que se encarrega de mostrar, seja fácil ouvir os ecos de muitos dos mestres desse estilo: algum do imaginário sonoro de John Coltrane anda por aqui. Como anda o de Miles Davis e o de Pharoah Sanders. Nomes de peso, como se sabe, do soul jazz, do bop, do free jazz e de tantos outros enredos sonoros de nomeação nem sempre fácil. No entanto, e depois de entrarmos bem neste The Epic, percebemos estar na presença de um disco amigável ao ouvido, daquele tipo de discos que são como os melhores amigos, que vão dando a conhecer aos poucos os seus maiores predicados. Os seus três volumes (“The Plan”, “The Glorious Tale” e “The Historic Repetition”) revelam uma infinita riqueza composicional.
Para a edificação deste colosso sónico, Kamasi Washington socorreu-se de uma orquestra de 32 elementos, um coro de 20 afinadas vozes e de uma banda de 10 músicos, a The West Coast Get Down, também conhecida como The Next Step, de onde sobressaem Thundercat (baixista), e o seu irmão mais velho, o conceituado Ronald Bruner Jr (bateria). Valerá ainda a pena destacar as vozes de Patrice Quinn e de Dwight Trible, que vão surgindo, graciosamente, a espaços. O saxofone tenor de Kamasi Washington, esse, vai pairando por muitos dos 172 minutos de The Epic como a voz mais agregadora de todas as outras vozes instrumentais. Sem ponta de egoísmo, note-se, dando bastante espaço e tempo a todos os outros músicos.
Sem que sinta qualquer necessidade de destacar algumas das faixas do triplo álbum de Washington, não resisto, mesmo assim, a fazer um ou outro sublinhado. No primeiro disco, saliento “The Next Step”. Se conseguir imaginar um R&B com Wayne Shorter aos comandos, talvez fique com uma ideia próxima daquilo que o tema é. Magnífico! No segundo, escolheria a faixa de abertura, a delirante “Miss Understanding”, cujo conturbado início me faz lembrar o magistral Karma, de Sanders. E, para que o equilíbrio entre as 3 partes se mantenha, chamo a atenção para “The Message”, tema que encerra esta epopeia de Washington, sobretudo pela diabólica percussão e pelo rendilhado do baixo. Impressionantes, sem dúvida!
The Epic é um dos melhores discos de jazz que 2015 viu nascer. Estarei, porventura, a ser simpático para com alguns dos outros bons discos do género que tenho ouvido, uma vez que me parece claro que este ganha a liderança aos restantes. De qualquer das formas, The Epic revela um homem capaz de se mostrar num patamar de óbvio domínio da sua arte. O próprio Kamasi Washington explicou todo o processo criativo que levou a The Epic de forma muito simples. Um músico não pode ter amarras, não pode espartilhar aquilo que anda solto no ar: o som. As palavras são suas, e mostram bem o que lhe vai na alma: “You have to let go from music. It comes through you. If you try to control it, you’ll never get the real thing. You can’t grab water. You have to put water into something. You can’t manhandle water or you’ll lose it.” Em The Epic nada se perde. Tudo se aproveita. Ao ponto, até, de poder ser uma das melhores coisas que poderá ouvir durante muito e muito tempo. O curioso é que o tal tempo que parece estar sempre em falta, aqui sobra, transborda, e por isso é melhor não o desperdiçar.
disco enorme