É difícil encontrar uma década que tenha sido particularmente penosa para Bob Dylan – mesmo que o seu começo nos 80s seja apreciado maioritariamente, para não dizer exclusivamente, pelos seus acólitos. Porém, Robert Allen Zimmerman não é apenas um dos nomes marcantes da década de 60: é um dos músicos que melhor se reinventou com o tempo, mantendo-se relevante durante quatro ou cinco décadas consecutivas.
Dylan, que chega a 1975 com um passado marcante mas nem sempre consensual, começou a arriscar quando decidiu largar os temas acústicos marcadamente políticos e contra-culturais dos primeiros discos (o que incomodou alguns puristas: no Newport Folk Festival em 1965 foi vaiado – por razões dúbias, numa polémica famosa -, e durante um concerto em Manchester, no ano seguinte, foi chamado de Judas por um fã – “play it fucking loud”, gritado à banda, foi a resposta). Mais tarde, entre o final dos anos 60 e a primeira metade dos anos 70, voltou a dar a volta ao texto, dedicando-se a um rock mais pastoral, a piscar o olho à música country. O facto de vários dos seus discos lançados nesse período serem maioritariamente compostos por covers também não ajudou; hoje, porém, com a equidistância que o tempo fomenta, é possível dizer que mesmo esses, sendo menos relevantes, são contudo bons (o mal recebido Dylan, por exemplo, lançado dois anos antes, é interessante). Compreende-se, portanto, que aquele período fosse descrito pelos críticos e fãs como um momento de menor fulgor na carreira do músico, o que não impede que se tenha exagerado nessa depreciação do seu momento de forma: por que outra razão isso aconteceu se não pelas constantes mudanças de rumo na sua música, que alguns não perdoaram, que a maioria não compreendeu, e que hoje quase todos respeitam?
A resposta veio com o interessante New Morning, lançado logo de seguida, mas sobretudo com este Blood On The Tracks, talvez o mais singular álbum de Dylan no pós-60s. Falo dele como um disco (porque evidentemente o é), mas não deixo de pensar nele como duas obras diferentes: a primeira construída nas sessões de Nova Iorque (gravações que deram origem a uma versão que esteve muito perto de ser comercialmente lançada), e a final, onde alguns dos temas foram alterados e re-gravados no Minnesota.
Tudo começa na escrita dos temas, num período conturbado da sua vida: o casamento com Sara Dylan por um fio, devido a uma incompreensão mútua que perspectivava um divórcio muito próximo. Muito se falou da vertente autobiográfica do disco: com alguma lógica, por certo, mas falhando talvez em dizer o essencial: em Blood On The Tracks não há a transposição das coisas mais banais da sua vida, sequer uma descrição exaustiva dos seus problemas afectivos (tralha que não interessaria a ninguém, se quiséssemos ser ingénuos, e que felizmente ficou entre eles), mas antes reflexões sobre a efemeridade das relações humanas e sobre a dificuldade de comunicação com o outro (se originada pelo falhanço do seu casamento é uma questão em aberto: é como se perguntássemos se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha). É claro que as canções partem, sempre, de um imaginário de ruptura amorosa que pertence a Dylan: mas ele expande-o em vez de o expor, e isso faz toda a diferença. Em Blood On The Tracks o que temos são temas amargos, desapontados e vingativos, escritos e cantados de bílis na boca, com uma necessidade de expressão diferente – mais feroz.
Estávamos em 1974 e Dylan ia mostrando, de forma algo secreta, as primeiras versões das suas novas canções a alguns amigos, entre os quais Stephen Stills – que terá depois dito a Graham Nash “Ele é um bom compositor, mas músico não é” – e Mike Bloomfield (famoso pela sua contribuição para “Like a Rolling Stone”), que afirmou posteriormente que Dylan tocou de forma ininterrupta as longas canções, todas no mesmo tom, ao ponto de lhe começarem a soar todas iguais. Em Setembro desse ano as canções são gravadas em Nova Iorque durante quatro noites, com Dylan muito preocupado em instruir os músicos por si recrutados – que foram saindo com o passar dos dias – a tocar consigo, criando versões descarnadas, sem roupagens desnecessárias, com as palavras a serem cantadas com o nervo e a acidez de uma voz que ali respirava e cantava a custo, desiludida.
Dois meses mais tarde Dylan mostrou o disco ao irmão, que lhe terá dito que este não seria bem sucedido por ser demasiado lúgubre e melancólico (os adjectivos não terão sido exactamente estes, mas similares). Foram, então, alterados e re-gravados cinco temas: “Tangled Up in Blue”, “You’re A Big Girl Now”, “Idiot Wind”, “Lily, Rosemary and the Jack of Hearts” e “If You See Her Say Hello”. As versões iniciais que permaneceram estão entre as que mais gosto de Blood On The Tracks: têm uma névoa e uma solidão – às vezes claramente desolada, outras quase demoníaca, fantasmagórica – que as tornam únicas.
Na fabulosa “Simple Twist of Fate” ouve-se um Dylan a cantar a estória de um encontro entre duas personagens (uma feminina e outra masculina) num parque, que começam por se olhar e que caminham depois “pelo velho canal”, dirigindo-se a um hotel, onde a personagem masculina acorda sozinho na manhã seguinte devido a uma “reviravolta do destino”. Há aqui um território ficcional, sem tempo nem espaço, de verosimilhança dúbia, que por isso se parece situar a meio caminho entre a imaginação e realidade, como se se tratasse de uma estória deslocada do mundo e da própria História. Nela estão versos como “He woke up, the room was bare / He didn’t see her anywhere / He told himself he didn’t care / Pushed the window open wide / Felt an emptiness inside / To which he could not relate” ou “People tell me it’s a sin / to know and feel too much within” – numa mistura propositada, note-se, entre um ele e um eu.
Outros temas que se mantiveram das sessões de Nova Iorque foram “Shelter From The Storm”, “Buckets of Rain”, “Meet Me In The Morning” e a mais acelerada “You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go”, outra grande canção, mais provocadora e desafiante (sobretudo porque, alegadamente, era dedicado a uma amante): a certa altura Bob Dylan canta versos como “I’ve seen love go by my door / It’s never been this close before / Never been so easy or so slow” e “Dragon clouds so high above / I’ve only known careless love / It has always hit me from below”. Tem pedaços de ironia bem direccionados (“Situations have ended sad / Relationships have all been bad / Mine have been like Verlaine’s and Rimbaud / But there’s no way I can compare / all those scenes to this affair”) e declarações ternas cantadas de fugida: “I could stay with you forever / and never realize the time”.
Com as alterações das restantes ganharam-se algumas coisas e perderam-se outras. “Tangled Up In Blue” e “You’re A Big Girl Now” melhoraram, e mostram que cada canção vive no seu universo: algumas funcionam melhor num ritmo e outras noutro, umas são mais maleáveis e outras menos, e nestas duas perdeu-se menos do que se ganhou com a re-gravação. “Lily, Rosemary and the Jack of Hearts”, por sua vez, é um caso difícil: a versão inicial tinha uma aura especial, para mim muito mais bonita, não fosse o incomodativo ruído que se ouve durante o tema (consta que provocado pelo encontro ininterrupto dos botões do seu casaco com a guitarra); mas a versão final, no seu tom mais descontraído, quase dançável, americana até ao osso, atira para o caixote do lixo a sua genialidade.
No entanto, há dois temas que perderam muito com a re-gravação: “If You See Her Say Hello” (cuja versão inicial continha uma solidão construída com precisão, e cuja versão final me interessa ainda menos que “Meet Me In The Morning” e “Buckets Of Rain”, os dois temas mais amplamente desprezados do disco) e “Idiot Wind”, uma canção fabulosa e verdadeiramente especial na sua versão inaugural; a final, mais acessível, de métrica mais acelerada a esconder a dureza das palavras, perde o isolamento e a desolação que a definiam. Essa versão inicial, se ouvida vezes suficientes, põe excertos na cabeça dos ouvintes, que se ouvem de tempos a tempos – por exemplo, o longo “People see me all the time / and they just can’t remember how to act / Their minds are filled with big ideas / Images and distorted facts / And even you yesterday / you had to ask me where it was at / Couldn’t believe after all these years / You didn’t know me any better than that /, sweet lady”; o seguinte, brutalmente vingativo: “You hurt the ones that I love best / cover up the truth with lies / One day you’ll be in a ditch / Flies buzzin’ around your eyes / Blood on your saddle”; e depois o desolado, já quase resignado, “It was gravity which pulled us in / And destiny which broke us apart”.
Seria difícil atirarmo-nos a Dylan por, tendo feito um disco muito bom, poder ter feito aqui um disco brilhante, paralelo à sua História e à História do rock e da folk. Mas seria lógico: os testemunhos contam que ele não mudou as canções não por não acreditar em si ou nos temas, mas porque lhe recomendaram que o fizesse devido a questões meramente comerciais. Por isso mesmo Bob Dylan, que se lhe lessem isto provavelmente se riria de tamanhos disparates, não assumiu um disco paralelo, e muito menos marginal: assumiu um disco industrialmente paralelo, recriado a pedido alheio, incompreendido como sempre mas a ceder parcialmente desta vez; tudo isto num disco bastante bom, com uns certos lampejos brilhantes. Por muito que se fale na frequência de aulas artísticas com o pintor Norman Raeben, por parte de Dylan, como mote de inspiração (assumido inclusivamente pelo próprio), não deixa de ser tentador pensar em Blood On The Tracks como a compreensão da (e resposta à) frase “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, de Liev Tolstói. Poucos músicos desta dimensão a terão entendido e replicado como Dylan fez. Mas, se houve quem se aproximasse, foi só porque Dylan não quis dar o passo final: o de, com o seu génio, criar um falhanço bem sucedido, ao invés de um sucesso parcialmente falhado na procura de uma precisão memorável.
Errata: onde se lê “muito preocupado” (quinto parágrafo) deve-ser ler antes “muito pouco preocupado”.