A estreia a solo de Júlio Pereira é uma “opereta-rock” cheia de grandes convidados e de um humor e uma ternura irresistíveis.
Quando pensamos em Júlio Pereira vem-nos imediatamente à cabeça a imagem do músico de cabelo longo com o seu inevitável cavaquinho entre as mãos, navegando as águas da música popular portuguesa. Mas, no início da sua carreira, o rock era um dos seus grandes amores. De guitarra eléctrica em punho, fez parte dos Xharanga e dos Petrus Castrus, nomeadamente no seu mítico álbum Mestre.
Depois deu-se o 25 de abril, com toda a envolvente política e emocional analisada, e Júlio Pereira de bom grado foi na onda, num movimento que o iria progressivamente afastar do rock e aproximar da música mais etnográfica pela qual ficaria conhecido. Em 1975 lança, juntamente com Carlos Caravalheiro, o disco Bota Fora, que contou com letras de monstros como Fausto, José Mário Branco, Manuel Alegre e Sérgio Godinho,
Mas a verdadeira estreia a solo, com um único nome na capa, viria no ano a seguir, 1976. E que estreia!
Fernandinho vai ó vinho foi descrito pelo próprio autor da seguinte forma: “uma opereta meio rock, em que o tema é baseado na vida de um jovem e as suas relações com o trabalho, a família, a vida militar, o desporto, a política, o amor, etc. Dadas as profundas alterações na sociedade portuguesa após o 25 de Abril – nomeadamente nos grandes centros urbanos – podemos encontrar alguns personagens que caracterizavam Lisboa nesta época”.
É, assim, um disco conceptual, acompanhando a vida de Fernando, o Fernandinho, desde criança e os tempos da escola até à vida de jovem adulto, passando pela tropa, pelo primeiro emprego, pela politização e pela noite de Lisboa. Uma das coisas curiosas deste disco é que ainda praticamente não temos aqui nada de “música popular portuguesa”, no sentido que lhe damos de aproveitamento e reinvenção das raízes populares da música, nomeadamente rural. Temos algum rock, sim, até aqui e ali com toques de prog (a lembrar a estreia de Jorge Palma com Uma viagem na palma da mão, de 1975), mas também algum jazz, música “ligeira”, fado, “vaudeville”, balada acústica, enfim, todo um mundo de criatividade a borbulhar.
Na boa tradição de ópera rock (mas sem a pompa que o termo implica, diga-se), há inúmeras personagens que vão aparecendo, ajudando a contar a história de Fernando (que é a voz, bonita e honesta, do próprio Júlio Pereira). E a lista de convidados é um deboche. Vamos elencar apenas alguns: Zeca Afonso, Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Vitorino, Francisco Fanhais, Carlos Mendes, Fernando Tordo, Jorge Palma (a fazer, entre outras personagens, de padre!) ou Sheila Charlesworth (cantora canadiana que na altura era esposa de Sérgio Godinho). Mas há muito mais. Temos uma muito jovem Eugénia Melo e Castro, a actriz e cantora Helena Isabel, Ana Zanatti e Júlio Isidro (protagonizando um interlúdio de anúncios) e um tal de Herman José, que começou por destacar-se enquanto músico antes da fama enquanto humorista.
Só por esta galeria de notáveis já teríamos motivos para escutar o disco, mas ele é muito mais do que um desfile de grandes nomes. É um disco que representa um fresco da juventude portuguesa naquela tão especial transição da infância para a idade adulta e do País da ditadura (e das suas heranças culturais) para o verão quente e para a democracia.
Tudo servido por grandes músicos e com um trabalho gráfico genial da autoria de Carlos Zíngaro, autor da capa e das ilustrações.
Infelizmente, este é um disco algo caído no esquecimento, não ajudando o facto de não estar presente nos serviços de streaming e de não ter conhecido reedição recente (embora tenha chegado a sair em cd). No entanto, não é fora do comum encontrá-lo, a preço simpático, nas lojas de discos em segunda mão. Até lá, pode encontrar os temas no youtube (uma dica: os vídeos estão numerados, pelo que devem ser ouvidos na ordem certa, para seguir a história).
Avancem sem temor, com garantia Altamont (e fica abaixo um cheirinho).