Acknowledgment. Resolution. Pursuance. Psalm.
A música serve para embelezar o silêncio em que vivemos. Seguindo o pensamento de John Cage, é impossível viver sem som. Após uma experiência numa câmara anecoica (à prova de som”, Cage descobriu que nunca se consegue estar num elemento totalmente desprovido de ondas sonoras. Ao entrar nessa câmara, John Cage ouvia dois sons muito distintos: um grave e um agudo. O grave correspondia ao pulsar do seu sangue, enquanto o agudo era o som do seu sistema nervoso em funcionamento.
A música está sempre à nossa volta. Ela preenche os silêncios das nossas vidas e há até vezes em que dá sentido aos nossos caminhos, como uma luz que os alumia. A Love Supreme de John Coltrane é uma dessas criações.
Em 1957, John Coltrane, saxofonista que tocou com nomes como Dizzy Gillespie, Miles Davis, Theolonius Monk e Charlie Parker, livra-se de vez do vício da heroína, que o acompanhava desde 1949. Segundo o músico, o que o fez ultrapassar esse grande cavalo branco foi uma experiência religiosa. Coltrane afirmava que passara por um acordar espiritual que o levou para uma vida mais cheia e produtiva e que, perante essa entidade luminosa, pediu que lhe fossem concedidos os meios para tornar os outros felizes através da sua música. A verdade é que Coltrane já fazia os outros felizes através da sua música – basta ouvir as geniais gravações realizadas com o quinteto de Miles Davis, para comprovar tal –, mas a sua genialidade criativa sobressai ainda mais a partir de 1958. Há três explicações plausíveis para este acontecimento: a) o largar a heroína; b) a experiência religiosa; c) ter tocado e aprendido com o brilhante Theolonius Monk. Seja qual destas hipóteses for, talvez sejam as três ao mesmo tempo, a verdade é que o músico que surge então vem renovado. Ouçam os excelentes Soultrane, Kind of Blue, Theolonious Monk & John Coltrane, ou Giant Steps (entre muitos outros) e perceberão a genialidade que irradiava de Coltrane nesta sua nova era.
Acknowledgment. Resolution. Pursuance. Psalm.
São estas as palavras que dão o título às três partes em que está dividida a magnum opus que é o álbum A Love Supreme.
Este não é o típico disco que se coloca na aparelhagem e se ouve enquanto se arruma a sala. Para se ouvir esta peça da forma que ela deve e merece ser ouvida, precisamos de proceder a alguns passos. Primeiro, temos de ter a certeza de que não vamos ser interrompidos durante a audição, portanto não nos faz mal nenhum deixarmos o telemóvel de lado por uma hora, desligar o wi-fi e baixar os estores. Acendam as luzes para lerem as palavras que São Coltrane nos deixou impressas na parte interior da capa do disco. Percebam de onde vem a inspiração para o que a seguir vão ouvir. Absorvam a universalidade da mensagem – já que Coltrane não especifica quem é o deus a quem se dirige –, essa mensagem de amor e de beleza que Coltrane buscava incessantemente. Vejam a sinceridade nos agradecimentos e não deixem de admirar a lindíssima ilustração de Viktor Kalin que se encontra no interior.
Podem agora apagar as luzes, ligar o gira-discos (este é um disco que não pode faltar em nenhuma biblioteca) e colocar o disco no prato. Lentamente desçam a agulha sobre o vinil e deixem-se embarcar na viagem espiritual, pessoal e musical que começaram agora mesmo.
O gongo de Elvin Jones informa-nos que a cerimónia está prestes a começar. A banda entra então progressivamente: os arpejos rápidos e certeiros de John Coltrane, os acordes do pianista McCoy Tyner, os toques rápidos e de intensidade variada nos pratos por parte de Elvin Jones e depois o mote dado pelo excelente baixista da banda: Jimmy Garrison. A melodia entoada pelo baixo acompanhar-nos-á ao longo desta primeira parte, dando o mote para aquele que é o mantra incutido por Coltrane.
Os três elementos da secção rítmica da banda começam por preparar caminho para deixar que o seu líder, de saxofone nas mãos, solte o seu rugido sob a forma de um solo. A acompanhar este solo, temos um ritmo de bateria hipnotizante que nos transporta para um mundo tribal, enquanto McCoy Tyner ataca as teclas de uma forma fervorosa, como se tivesse entrado em transe, e a linha de baixo pulsa por entre os sons que até nós chegam, fazendo-nos recordar a importância que o contrabaixo tem na ligação entre a banda. O solo de Coltrane varia entre o frenético e o tom mais relaxado, acabando por retomar o tema de quatro notas que nos foi apresentado pelo baixo no início da peça, desta vez tocado em diferentes tons, até que desagua na voz de Coltrane a cantar repetidamente o motivo «A love supreme, a love supreme, a love supreme». Um conjunto de palavras que serve tanto de mantra como qualquer «jai guru deva om». Lentamente a banda vai-se retirando. Primeiro é Coltrane que sai, deixando apenas a secção rítmica, saindo depois o piano e por fim a bateria, isolando no palco Jimmy Garrison e o seu contrabaixo, que tinham vindo a acompanhar a música, mas que agora têm lugar de destaque com um brilhante solo que faz a transição entre o «reconhecimento» e a «resolução».
A segunda parte da suite dá-se pelo título de «Resolution» e é introduzida pela continuação do solo de contrabaixo que terminou a parte anterior. Aos 20 segundos ouvimos um saxofone muito ao longe que nos anuncia que não tarda a chegar uma nova dinâmica, e ela chega sob a forma de um quarteto em sintonia. Piano, saxofone e bateria entram sem falhas para auxiliar o contrabaixo que continua num ritmo apressado e que manterá um groove esplêndido até ao final da peça. Coltrane é o primeiro a solar, mostrando-se resoluto na sua procura, em busca da perfeição tão desejada. O solo de Coltrane dá depois lugar a um belíssimo solo de McCoy Tyner que nos leva a uma viagem pelo seu teclado, caminhando desde o típico blues americano até aos sons mais influenciados pelas escalas orientais, sem nunca perder o fio condutor. Ouçam o bater incessante de Elvin Jones, que parece completamente possuído, acertando em todas os componentes da sua bateria como se não houvesse um amanhã – ou um outro take. ‘Trane volta à carga, com um solo ainda mais expressivo e agressivo, retomando o tema do início da sua deliberação, que cada vez parece ser mais convicta.
Quando o lado A acabar, é imperativo mudar para o lado B, da forma mais célere possível, pois a viagem chegou agora a meio. É como uma história em que estamos desejosos de saber o final – é uma qualidade inerente ao ser humano. Ninguém gosta de só saber meia história. Quer seja a ler um romance do Gabo, quer seja a ver uma sitcom americana.
«”Pursuance”/”Psalm”» é o nome da terceira e última parte desta saga em direcção ao «Love Supreme» e abre com um arrebatador solo de bateria de Jones, que liberta tudo aquilo que pudesse estar a conter. De novo a banda vem em auxílio do membro e volta a mostrar uma coesão extrema, para dar lugar depois a solos alternados. Primeiro ‘Trane, depois Tyner, depois o líder de novo, demonstrando as suas sheets of sound, naquele que é, na minha opinião, o melhor solo de toda a peça. Após este, brilhante, vem à ribalta Elvin Jones e um novo solo dividido com Garrison, que toma depois as rédeas desta perseguição espiritual através dum solo de contrabaixo que liga as duas secções desta última parte.
«Psalm» é a declamação musical de John Coltrane que recita o seu poema, deixando que as suas palavras sejam transportadas pelo saxofone tenor que segura entre as mãos. Acompanhem a melodia com a leitura do poema se conseguirem, mas não percam a beleza musical que contextualiza esta celebração (oiçam os motivos festivos da bateria, do contrabaixo e do piano, em contraste com a melodia dramática de John Coltrane). Este é o derradeiro salmo. Mais do que qualquer um do rei David, este é o salmo que conjuga a Beleza com a Fé. Deixem-se levar pela poesia do enorme John William Coltrane.
Fechem os olhos, pensem em tudo aquilo que ouviram e sentiram e, se for caso para isso, voltem a pôr o disco do princípio.
«Thank you, God. Amen.»
excelente. vou ouvi-lo outra vez.