Os mitos são uma das grandes obras da narrativa humana. A voz simbólica de uma criatura, que com a sua candura nos faz imaginar que cada cultura persegue uma explicação para a origem das coisas – do universo, da morte, da vida, do mundo, dos animais, do infinito, do amor, do som, do princípio, e de mais tudo aquilo que nos devassa a consciência.
Current 93 – Earth Covers Earth (1988)

E ao mito está associado o rito. As cerimónias, as orações e os sacrifícios, as danças, as canções de exasperação existencial, os quadros esculpidos em corpos bravos e vingadores da verdadeira justeza. O mito é parte viva da vida do homem.
No tempo em que estamos, no nosso tempo, o tempo de agora, a música já recebeu outros significados, novas categorias. A música folk, tomada como exemplo para o disco em causa, é a música do povo, que descende culturalmente da música tradicional rural, ou é pelo menos influenciada por ela. É por isso natural que a música folclórica sobreviva melhor em zonas onde a sociedade, geralmente rural, ainda não foi afectada pela comunicação de massas e pela comercialização da cultura indistinta. A comunidade alegra-se ou chora junta, partilha inteira a sabedoria transmitida pela tradição não-escrita. E, de tempos a tempos, vai mudando a melodia e a letra das suas populares canções. De geração em geração, perdem-se e acrescentam-se, por meio da oralidade não-científica, crenças religiosas e políticas; feitos estóicos e magias incomensuráveis…
Eis-nos no 14.º trabalho dos Current 93.
Earth Covers Earth, mais uma grande obra de David Tibet (e do seu fiel séquito). Este álbum, um álbum de transição, apresenta apenas alguns dos modelos descritivos dos Current 93, incluindo algum muito pouco noisescape experimental apocalíptico. É nas criações mais folk orquestradas e poéticas que este disco se superioriza. Fortemente inspirado pela poesia de Byron («And when Rome falls – falls the world»), presente-se uma enorme influência popular tradicional. O neo-paganismo desenterra rituais antepassados, textos reencontrados na beleza da fonética anglo-saxã, filha do sublime norte. Ajudado pela bonomia das vozes das crianças e das sopranos, Earth Covers Earth é um álbum estranhamente fácil de ouvir, ainda assim imerso num imenso fervor.
As faixas deste álbum vão escorrendo por uma delicada ampulheta. David Tibet vai descartando os seus dotes poéticos, à medida que o disco se vai acumulando numa espiral concêntrica e hipnotizante. Há assuntos que se repetem. Talvez até mesmo melodias. Mas assim é a vida de um povo: repetição de hábitos, repetição de ideias e acções.
Entre as demais, destaque para a merecida homenagem a Douglas Pierce dos Death In June em «Rome For Douglas», e a extasiante «Hourglass For Diana». Um crescendo que começa com a condução de uma simples guitarra acústica, para em seguida incluir flautas, violinos e o timbre teatral de Tibet, que no fim colidem todos numa parede maciça de urgência. Além da instrumentação muito interessante, esta faixa demonstra bem a habilidade poética e de performance de Tibete. O resto do álbum é todo ele muito interessante, terminando inesperadamente com uma faixa épica de noisescape que se encaixa na perfeição. Não sendo uma obra tão heterogénea como outras dos Current 93, este disco é um colosso da história. Um marco incontornável da cultura dos amantes da música alternativa.
João Afonso
Se me perguntassem hoje o que é que queres ser, eu diria não sei. Mas há duas outras três coisas que tenho a certeza absoluta. Uma delas é a música. Nunca aprendi por achar uma seca ler pautas. Por isso prefiro tocar de ouvido. E ouvir muita, muita música! De A a Z, até enjoar. O que acaba por nunca acontecer. E daqui poderia partir para uma teorização mais ou menos filosófica do que é a música. Ora, vou poupar-vos a esse desmazelo retórico. Tirem-me o cabelo, tirem-me o bacalhau, tirem-me a viagem de um mês à Nova Zelândia, mas por favor não me tirem a música. Isso não…
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Belo artigo, a despertar a curiosidade. É para isso que o Altamont serve!