Talvez estejamos na presença de um clássico perdido nos meandros do tempo, uma pérola experimental de John Cale e de Terry Riley, os magos por detrás de Church of Anthrax.
São muitas as vidas artísticas de John Cale. Muitos os álbuns gravados, tanto a solo como com outros músicos. Desde que começou com os lendários Velvet Underground, o escocês nunca mais parou. A sua produção discográfica é imensa, incluindo um extenso rol de participações em bandas sonoras. Como produtor, a lista é também vasta e volumosa. Enfim, dá ideia de que John Cale nunca foi capaz de ficar quieto por muito tempo. Já este ano, como vos demos conta, Cale apresentou o seu novo álbum de inéditas, o muito louvável e interessante Mercy. No entanto, e perante tantas décadas de trabalho produtivo, decidimos puxar um pouco o filme atrás, indo até 1971, o ano em que lançou Church of Anthrax, o álbum que fez a meias com Terry Riley, outro músico com um percurso discográfico muito extenso e digno do mais sério registo. O excêntrico (John Cale) e o minimalista (Terry Riley) uniram esforços, e em fevereiro do já referido ano deram ao mundo um curioso e (algo) estranho disco. Pouco coeso, disparando para os mais diferentes lados (entenda-se géneros musicais), a verdade é que Church of Anthrax tornou-se um disco de culto para muitos. A nova febre do vinil, que cada vez mais parece estar imparável, não deixou o álbum perdido e esquecido no fundo da gaveta, devolvendo-o ao mercado através de uma nova edição, em 2020.
O álbum abre com a faixa que lhe dá nome, “Church of Anthrax”. O que dizer dessa jam de pouco mais de nove minutos, a não ser tratar-se de uma deslumbrante receita de como fazer a mais perfeita mistura entre free rock e free jazz? Pouco mais, de facto, embora ouvir seja sempre melhor do que detalhar por escrito. A pujança do tema é evidente, mesmo que passados apenas alguns segundos do seu início. É, seguramente, uma bela trip de notas e ritmos contundentes, um regalo psicadélico de fino recorte estético. Já “The Hall of Mirrors in the Palace at Versailles” (que título adorável, não acham?), a segunda composição do disco, parece fugir do sentido estético do primeiro, andando às voltas sobre si mesmo, fazendo lembrar, de alguma maneira, o que poderia ter sido o início da carreira a solo de Mike Oldfield, se em vez de guitarras tivesse optado por pianos matraqueantes e tresloucados e trompas que soam de forma desenfreada. Ao fim dos seus quase oito minutos, nem damos pelo tempo passado, como se tivéssemos sido hipnotizados pelo espírito circular da composição. Assim termina o Lado A da fatia sonora. No B, logo a abrir, a fenomenal “The Soul of Patrick Lee”, que se faz estranhar por ser tão normal e tão simples, perante o que se ouviu antes e o que se ouvirá depois. É o instante de calma no meio do tufão, a aragem fresca entre agrestes nortadas. Bonita e clássica, do início ao fim. Parece retirada de um qualquer bom disco da cena de Canterbury. A voz que se ouve não é a de John Cale, mas a de Adam Miller, músico amigo de John Cale. O que se segue, no entanto, é um novo trambolhão rítmico e melódico, no bom sentido, claro está. Nova jam, agora de piano e bateria, onze minutos e picos de improviso, não nos dando qualquer tipo de descanso ou tréguas. Chama-se “Ides of March” e é um longo caminho até ao momento final, a já mais clássica “The Protégé”. Se fosse cantada, poderia muito bem ser uma dos Velvet Underground, uma lost track que não coube em nenhum dos álbuns da banda da banana andy warholiana.
Voltar a Church of Anthrax foi uma experiência reconfortante. O álbum de 1971 é, poderemos dizê-lo, um clássico algo perdido que vale a pena revisitar. Vale mesmo muito, a começar pela excelente capa feita pelos criativos John Berg, Richard Mantel, Kim Whitesides e Don Hunstein. Não é difícil imaginar que nos aposentos revelados nessa icónica imagem poderia ter vivido, por exemplo, Shakespeare. Ou mesmo qualquer outra figura ilustre dos séculos XVI ou XVII. Há nela algo de cénico, de teatral. Porém, ao abrirmos as cortinas sonoras de Church of Anthrax, a realidade é bem diferente e o tempo imaginado também. Um dos melhores delírios experimentalistas dos anos setenta, este álbum de John Cale e Terry Riley!