É altíssimo o patamar onde se posiciona Palais d’Argile. Os franceses Feu! Chatterton fizeram um álbum tão repleto de predicados, que é difícil imaginar ter entre mãos algo assim tão extraordinário.
Há muito que da antiga Gália não nos chegava algo tão estimulante. Apesar de não serem virgens nesta coisa de lançar discos e fazer carreira musical, é com Palais d’Argile que os Feu! Chatterton merecem entrar pela porta grande do universo artístico planetário. Talvez não venha a acontecer, é certo, mas seria justíssimo que o mundo inteiro pusesse os seus perros ouvidos no recente longa-duração da banda francesa. Os nossos, convém dizer, não se fizeram surdos, como bem se verá. Antes pelo contrário: estão maravilhados, ao ponto de Palais d’Argile ser, até ao momento, um dos mais belos, intensos e fascinantes discos do (ainda) mortiço ano de 2021. As razões são muitas, e podem ser verificáveis logo à primeira audição, mesmo que eventualmente desatenta e desinteressada. O que se ouve nas treze faixas do álbum faz-nos entrar numa espécie de espiral do tempo da chanson française, embora modernizada e vibrante como nunca. Mas há mais, muito mais. Há o texto poético, o dizer dos versos, a veia dançante de alguns temas, mas sobretudo há ainda aquilo que nos faz gostar tanto de música: canções extraordinárias! Como se não bastasse, Palais d’Argile oferece-nos uma visão do mundo muito curiosa. Curiosa e atual, convenhamos. Apetece dizer que já merecíamos um disco assim, para tornar um pouco mais alegre e viva a nossa existência em banho-maria.
Palais d’Argile apresenta-nos um mundo novo. Um mundo e um tempo de ecrãs tácteis que iludem a realidade, inventando outra à qual nos colamos quase sem retorno. É o pouco admirável mundo novo viral em que vivemos, espelho do que nos assola, isolando-nos como se fossemos conchas de nós próprios. Mas o que os Feu! Chatterton cantam, de facto, é a saudade do mundo antigo, do que existia e que existe agora mais na memória saudosa do que de qualquer outra forma: “Adieu vieux monde adoré”, canta Arthur Teboul em “Cristaux Liquides”, por oposição aos versos iniciais (“Moi, je caresse ton visage / Sur mon écran tactile”) do mesmo lindíssimo tema. Não faltam, aliás, grandes canções, como aqui já se referiu. A sequência inicial é, toda ela, inebriante. “Monde Nouveau”, a mencionada “Cristaux Liquides” e “Écran Total” são balas certeiras para o cérebro e para as ancas mais dançantes. Sempre com aquele savoir-faire, de copo na mão, que os velhos e bons mestres da canção francesa ensinaram ao mundo em décadas passadas do século transato. Por isso, ouvir Palais d’Argile é ter Gainsbourg ao nosso lado, é ter Montand, Brel e Aznavour como companhia, piscando timidamente, e de forma simultânea, o olho a Barbara, a Gréco e a Jeanne Moreau, ao mesmo tempo que entram Alain Bashoung, Ferré e Bécaud na festa rítmica, eletrónica, roqueira dos cinco rapazes geniais da eterna Paris! Depois, vem a tranquilidade outonal de “Avant Qu’il n’y Ait Le Monde”, a mais bela canção que poderão ouvir este ano! Sim, não dizemos a coisa por menos. É ouvir com atenção para depois se entender a razão destas palavras, embora muitos outros temas (todos, na verdade, o que é realmente espantoso!) disputem a nossa atenção de maneira incondicional: “Compagnons” (que maravilha!) e “La Mer” (a poesia, sempre a poesia – “Elle a mis ses bas, lui ses paumes sur ses hanches / Il ne savait pas comment bien tenter sa chance”) servem apenas como mais dois meros exemplos.
Em Palais d’Argile há ainda a sublinhar uma vertente épica que lhe confere estilo e substância. Há ecos de Arcade Fire em alguns temas (“Écran Total”, claro), como se nota também, e de que maneira, o toque decisivo do mago da eletrónica francesa, Arnaud Robotini, na produção do álbum. O mais curioso será, porventura, perceber que a epicidade do disco existe na medida exata em que ele próprio canta o colapso do mundo. Tudo isto encenado de forma quase operática, romântica, bela e trágica ao mesmo tempo. Mas não nos assustemos com a dura verdade de Palais d’Argile, até porque convém ter em conta mais esta pequena achega: que outra coisa é, de facto, a existência humana, a não ser a vivência lúcida e encenada do seu próprio fim?