O álbum de estreia de Chico Buarque é mais inventivo do que se tem proclamado.
Costuma-se destratar o primeiro disco de Chico Buarque, de ’66, acusando-o de imaturo. É essa, aliás, a opinião do próprio Chico, dizendo que ainda não tinha encontrado a sua voz, que estava demasiado preso ao “pai” João Gilberto. Tudo isso é muito bonito, e com um fundo de verdade: Buarque tinha apenas 22 anos, e a bossa nova, apesar de já morta como movimento, ainda exercia uma imensa influência sobre o carioca, na batida do violão, na voz suave, na recusa visceral de tudo o que fosse excessivo e inorgânico. Acontece que depois se intrometem as canções concretas e aí as coisas mudam de figura, só clássicos uns atrás dos outros, parece um best of.
Vamos mais longe. Estamos em crer que no álbum de estreia já existe um autor a emergir. O clássico “Pedro Pedreiro” é bem ilustrativo, em diversos tabuleiros. Comecemos pela desenvoltura no drible das palavras, Chico colocando a sílaba que quer nas nesgas mais exíguas, fazendo o difícil parecer fácil. A repetição obsessiva da palavra “esperando”, reforçando a ideia de que o pobre pedreiro tem a sua vida eternamente adiada, e o omanatopeico verso final, “que já vem / que já vem / que já vem”, imitando o gingar de um comboio, revelam uma invulgar originalidade lírica, Buarque ensinando aos artistas menores que é possível conciliar crítica social com beleza poética. Do ponto de vista musical, há uma vontade notória em alargar o leque de influências: “Pedro Pedreiro” deve mais à guitarra percussiva de Jorge Ben do que ao doce balançar de “Chega de Saudade”.
Mesmo os que subestimam o valor estético deste disco – surdos! -, terão que reconhecer pelo menos a sua importância histórica, um dos álbuns definidores do nascimento da chamada música popular brasileira (MBP para os amigos), com forte implantação no meio estudantil “esquerdalha” e com montra para os demais nos festivais de música televisivos.
O contexto político e económico mudara profundamente. Quando surge a bossa nova, em 1958, e no volver da década, o Brasil vivia uma conjuntura de abertura democrática e de modernização económica, e a soalheira, sofisticada e apolítica bossa nova acaba por se tornar um símbolo poderoso deste optimismo. Acontece que em ’64 dá-se um golpe de estado, instaurando-se a ditadura militar. A geração que na adolescência se formou na bossa nova sente-se agora obrigada a empenhar-se politicamente contra o regime, e a demarcar-se do iê-iê-iê de Roberto Carlos e sua Jovem Guarda, considerada alienada e americanizada (o golpe de estado teve o beneplácito dos Estados Unidos e suas multinacionais, é bom lembrar). “Tem Mais Samba”, encomendada originalmente para a peça “Balanço de Orfeu!”, estreada em ’64, faz justamente a apologia da música de raiz brasileira contra a invasão anglo-saxónica.
A MPB abraça então um nacionalismo cultural, procurando inspiração no folclore regional, para criar uma música não só engajada como genuinamente brasileira. Houve quem levasse mais longe esta empreitada, como Edu Lobo, que foi beber muito às tradições nordestinas; mas mesmo Chico no seu seminal álbum de estreia, aprofundou essa ligação com as raízes, abraçando – em temas como “Tem Mais Samba” e “O Sonho de Um Carnaval” – um samba orgulhosamente “primitivo”, com batucada tribal, cavaquinho tosco e rudes coros femininos, nas antípodas da sofisticação joãogilbertiana.
Da mesma forma, Chico pisca o olho ao samba cosmopolita dos anos 30, o chamado samba-canção, que havia sido um dos grandes inimigos estéticos da bossa nova. Canções como “Madalena Foi Pro Mar” e “A Rita”, onde a dor de corno é tratada com uma leveza e um humor deliciosos, têm a influência assumida de Noel Rosa, citado inclusive no último tema: “e um bom disco de Noel”.
É bom lembrar que este é o disco de “A Banda”, vencedora do II Festival de Música Popular Brasileira (transmitido pela TV Record), e single de enorme sucesso (ainda hoje profundamente enraizado no imaginário colectivo brasileiro). Caetano Veloso, no seu livro “Verdade Tropical”, considera-a uma canção menor, elogiando a coragem de Chico para mais tarde descartar a “singela e antiquada marchinha”. Mas este tipo de crítica baseia-se em pressupostos duvidosos: porque raio é que o complexo, difícil e imprevisível há-de ser mais belo do que o seu contrário? Para nós, a simplicidade ingénua e instantaneamente cantarolável de “A Banda” é, pelo contrário, é uma força, não uma fraqueza. Como num conto de fadas, a aparição de uma banda filarmónica numa povoação bisonha e cinzenta, onde nada acontece, pinta subitamente tudo de uma luz radiante. A magia é fugaz, a banda para de tocar, a monotonia regressa no final, mas o sonho e a possibilidade de transcendência já ninguém lhes pode tirar.
Pela beleza intemporal das suas canções, pelo virtuosismo das suas rimas, pela encantadora simplicidade da sua poesia, o disco de estreia de Chico Buarque é muito mais do que uma incipiente obra de juventude. Iríamos mais longe, arriscando a ideia de que é uma das mais bonitas homenagens ao encanto do samba, quase um disco conceptual a este respeito. Samba como fé, como seiva, como sonho, quando tudo o resto conspira para quebrar.
O Altamont agradece a gentileza!
Adorei o texto e adoro ”A Banda” de Chico Buarque.