O que dizer de um disco tantas vezes marginalizado e preterido pelos mais aguerridos fãs de Iggy Pop? Para mais, eu próprio não me considero um profundo conhecedor do trajeto da iguana americana para aqui vir escrever sobre um dos seus mais experimentais e pouco conhecidos discos, e estes factos podem, desde já, começar a minar o texto que agora enceto. Dando todas estas minhas reservas de barato, ao leitor caberá sempre um duplo julgamento final: o da crítica escrita, e o do álbum em si mesmo. Assim como se lê, também se esquece, assim como se ouve, também se olvida. Nada a temer, portanto.
Se há, de facto, carreira cheia de altos e baixos na história do rock americano dos séculos XX e XXI, Iggy Pop corporiza-a como ninguém. Entre consideráveis momentos de glória e falhanços vertiginosos, há de tudo um pouco no percurso deste idiot. Assim sendo, e já um pouco habituados a estas circunstâncias, ninguém terá estranhado muito que depois de três flops comerciais seguidos com a sua editora de então (Arista), Iggy Pop se tenha encontrado despedido e sem grandes ideias de como encarar o futuro. O último disco que gravou para a label americana (Party, de 1981) foi tão confrangedor que Iggy foi largado ao seu próprio destino. Socorrido por Chris Stein, que entretanto havia criado a Animal Records (subsidiária da toda poderosa Chrysalis), o guitarrista e mentor dos Blondie teve nas suas mãos a oportunidade de trabalhar com o seu ídolo, propondo-lhe um contrato para um novo trabalho. O que daí resultou foi o disco que aqui vos trago: Zombie Birdhouse.
Zombie Birdhouse (Animal Records, 1982) é um disco que parte de uma premissa: Iggy tem o total comando das operações, sobre ele não recai a mínima pressão editorial, não está obrigado a fazer um trabalho que renda dinheiro, podendo ser, finalmente, a alma livre que havia sido nos primeiros anos de carreira com e pós The Stooges. No entanto, e embora na altura menos acelerado em relação ao consumo de álcool e drogas, Iggy Pop não está bem, e talvez por isso este Zombie Birdhouse seja um trabalho um pouco à margem de um artista que estava, também ele, marginalizado no início dos anos 80. Para mim, que tenho ouvidos capazes de lutar contra adversidades e ideias feitas, não há melhor disco do que este em toda a sua carreira. Nem mesmo The Idiot ou Lust For Life se aproximam dele. As razões são muito simples: enormes canções de travo pop/rock construídas sem a obrigação de serem feitas para hits de rádio, uma mão cheia de boas e bem humoradas letras (“Big Dick is a thumb’s up guy / he shot a missile in the sky / it functioned just as advertised / until the fire made him cry / look into it later when the dust is clearing off the crater” parece-me ser um bom exemplo do que digo), e outra ainda de elementos sonoros bizarros e estranhos que dão a Zombie Birdhouse a tal ideia de experimentalismo que a crítica não soube, ou não quis, aceitar. Outra importante faceta do disco é a aproximação que Iggy faz a uma certa música de características afro, um pouco na linha dos trabalhos dos Talking Heads com Brian Eno. O disco, obviamente, foi um desastre comercial, e Iggy teve de se fazer à vida indo para a estrada com as suas novas canções, coisa que queria evitar, como ele tantas vezes mencionou. Assim nasceram as Zombie Birdhouse Tour (1982) e a Breaking Point Tour (1983), esta última levando ao mundo canções como “Run Like a Villain”, “The Villagers”, “Angry Hills”, “Ordinary Bummer”, “The Ballad of Cookie McBride” e “The Horse Song”, apenas para dar meia dúzia de bons exemplos, que de outra forma dificilmente chegariam aos ouvidos do planeta mais antenado com o rock iggyano, tal o fracasso do disco em questão. Rob Duprey tem uma enorme participação neste trabalho, tanto na feitura das canções, como enquanto músico. Na verdade, ele é quase um one man band encarregando-se de guitarras, teclados e vocais.
Outro aspeto interessante de Zombie Birdhouse é o facto de Chris Stein, para além de produtor da obra, ter tocado baixo em vários momentos do disco, e ainda ter contado com a sempre brilhante prestação de Clem Burke na bateria. Estes dois monstros dos Blondie sempre tiveram Iggy Pop como referência musical e como amigo. Frank Infante, outro membro da banda de Debbie Harry, fez toda a digressão mundial da Breaking Point Tour como guitarrista, engrossando assim a participação do sexteto de Nova Iorque na ajuda a Iggy.
Tenho a sorte de ter a versão dupla de Zombie Birdhouse (primeiro cd com versão original do disco + uma faixa extra, e segundo compacto com gravação ao vivo de 18 temas da tour de apresentação), e volto a ele inúmeras vezes sempre com grande prazer. Não é fácil encontrar esta versão (nem a simples, aliás) a preço minimamente satisfatório. O disco patinho feio de Iggy Pop é, afinal, um objeto raro e de algum culto. É também, e sobretudo, um documento fora dos eixos de um artista que sempre primou por descarrilar de quando em vez.
”Aspeto e facto”,achei engraçado estas duas palavras aparecerem na mesma frase,a gente escreve ”aspecto” e ”fato”,é só uma questão de ”c”,rs.