O trigésimo-quinto álbum de Herbie Hancock, Future Shock, cruza o jazz com o hip-hop e o electro-funk. Uma das pedras angulares dos loucos anos 80.
Herbie Hancock gosta de provocar os puristas, levando o jazz para territórios proibidos, ou então é apenas curioso. Nos anos 70, fá-lo integrando o funk e o disco na sua linguagem (Head Hunters é o disco-charneira). Quando Hancock chega a Future Shock, de 1983, dois dos temas ainda mantêm essa estética: a canção-título, roubada a Curtis Mayfield, e mantendo o falsete da praxe; e “TFS”, bonito instrumental com o característico baixo aborrachado. Mas nas demais quatro faixas há mesmo um “choque de futuro”, Hancock mergulhando de cabeça no hip-hop e no electro, só para ver no que dá.
As drum machines, frias e maquinais, contrastam com o groove gingão das teclas, robots dançando numa disco em Marte. Como foram usadas as tecnologias de ponta da época, hoje achamos as batidas datadas, mas isso não é necessariamente mau, assegurando-nos uma saborosa viagem no tempo. Sorrimos com o futuro imaginado nos anos 80 – gélido e mecânico -, tão diferente do rumo que é o nosso, o da suavidade digital.
O single “Rockit” faz furor, das primeiras vezes em que a loucura do scratch chega às massas ignotas, cortesia do “giradisquista” Grand Mixer DXT. O vídeo icónico, com os seus autómatos meio sinistros movendo-se ao ritmo da música, ajuda a celebrizar o tema. A melodia das teclas – brusca e desengonçada – tem um sentido de humor bizarro mas irresistível (as suas notas parece que dançam breakdance). Uma voz em vocoder relembra os mais distraídos que estamos em plenos anos 80, e, lamentavelmente, sem vergonha disso…
O sintetizador de “Earth Beat” é exótico e modernaço, como um ZX Spectrum a tentar engatar uma tailandesa e a não conseguir. A meio de “Autodrive”, Hancock tem a iluminação “sou um pianista de jazz”, e logo começa num vôo hardbop, cheio de bazófia e fulgor. No resto do álbum, finge outra vez que só sabe três acordes, com medo de apedrejarem o erudito. O último tema, “Rough”, é moderno no seu minimalismo, repetindo sempre a mesma frase melódica, com um falsete cheio de pinta.
Pela sua alegria contagiante, arrojo experimental e um sentido agudo do seu próprio tempo, Future Shock é um disco incontornável. Que tenha um saboroso groove é apenas um bónus. Mal não fará…