Lusofonia

Cuca Monga: uma editora, um colectivo artístico, uma forma de vida

Está prestes a chegar a segunda edição do Festival Cuca Monga (é já esta quarta-feira). Depois do sucesso da edição inaugural, este ano o certame foi alargado, mais bandas, mais palcos, mas os mesmos preceitos: saudar a música portuguesa e homenagear os espaços que espoletam a criação artística. Para saber um pouco mais sobre este festival, mas também sobre a editora onde teve origem, conversámos com Domingos Coimbra, baixista dos Capitão Fausto e um dos fundadores e impulsionadores deste colectivo artístico.

 

Altamont: Comecemos pelo princípio. Como nasceu a Cuca Monga?

Domingos Coimbra: Foi em 2014, sendo que o início da editora é uma coisa completamente abstracta, foi em 2014/2015, quando nos mudámos para a nossa primeira sala em Alvalade, e acabou por ser uma ideia em que a dada altura projectos paralelos de Capitão Fausto precisavam de um sítio, para editar, para sair cá para fora. Eram os Bispo, Modernos e El Salvador, e então criámos a Cuca Monga que era um selo para as coisas que nós já íamos fazer de qualquer forma. Eu acho que é só mais em 2015/2016 que começámos – ainda de forma amadora e abstracta – a ajudar alguns artistas que vieram de fora, ao princípio era uma coisa completamente fechada e depois abriu aos Ganso, depois abriu ao Luís Severo, que acabou a juntar-se a nós e ajudámo-lo a fazer o Luís Severo, no caso dos Ganso, o EP Costela Ofendida e o Pá Pá Pá, eu acho que foi aí que nós ganhámos um gosto por esta ideia de gerar um grupo de vários músicos, que podem ter afinidades musicais ou não, que gostam uns dos outros e que através de um espaço – neste caso era Alvalade antiga – e que vão ajudando na carreira dos artistas. Às vezes era só ajudar na produção dos álbuns, às vezes era ajudar a gravar, às vezes era ajudar a produzir um concerto, mas começou aos poucos e poucos a desenhar-se como uma cena na qual podíamos ajudar artistas a crescerem.

Portanto começou como uma coisa meio a brincar, mas acabou por se tornar sério.

Sim… eu gosto e sinto que há um lado nem sempre sério nas coisas que fazemos, mas acho que nós ao longo dos anos temos tentado dar alguma seriedade ao trabalho mais clássico que uma editora deve ter, e que ao princípio era uma confusão porque eram miúdos a tentar fazer tudo pela primeira vez. E uma das coisas que nós também tentámos fazer com a Cuca Monga, com as várias experiências que fomos tendo com Capitão Fausto – não só nós os 5 mas também o Diogo [Rodrigues] que também faz parte da Cuca Monga, e o Joaquim Quadros –  foi tentar arranjar formas um um bocadinho mais consistentes de ajudar artistas em início de carreira. E aí, mais para 2017/2018 começa a ficar um bocado mais sério, porque começaram a entrar também mais artistas e de repente não estávamos ali só com uma ou duas bandas que ensaiavam connosco, entraram os Reis da República, os Zarco, o Luís Montenegro (Rapaz Ego) e nós conseguimos aos poucos construir uma estrutura que hoje em dia ajuda mais de 10 artistas.

E os Capitão Fausto começaram a “apadrinhar” essas bandas que estavam a em início de carreira.

Houve uma altura, no início da Cuca Monga – e eu percebo, fazia sentido – que se fazia imensas vezes, cunhar as bandas que nós estávamos a lançar a Capitão Fausto, eu acho que é inevitável quando se fala da Cuca Monga falar de Capitão Fausto. Mas um bocadinho do nosso trabalho dos últimos tempos foi também conseguir distanciar um bocado as coisas, ou seja, trabalhar as ideias para que elas tenham uma autonomia total em relação à origem, e portanto eu acho que apadrinhámos no sentido de apoiar mas não necessariamente de querer aproximar as bandas daquilo que nós fazemos musicalmente. É óbvio que às vezes nestas coisas de grupos de amigos, e amigos alargados, ou artistas que se admiram uns aos outros, às vezes há uma tendência para uma aproximação sonora, mas eu sinto que ultimamente isso tem alargado um bocado o leque e o espectro, e isso é uma coisa que eu acho que é muito positiva. É bom associar-se um som à Cuca Monga mas acho que também é igualmente útil e desejado que se associem vários sons ou uma ideia que já está um bocadinho mais estável.

Se agora aparecerem aí uns miúdos do punk hardcore a querer fazer parte da Cuca Monga, vocês recebem-nos?

Adorava! Mas a nossa ideia é: só ajudamos artistas se sentirmos que conseguimos de facto ajudar, ou seja, aquela ideia de ter um catálogo alargadíssmo mas depois as coisas não acontecem, os discos não são ajudados, as carreiras não crescem, isso é uma forma um bocadinho egoísta de coleccionar talento. E eu acho que no meio da música alternativa em Portugal, onde as oportunidades são poucas, onde é tudo muito de nicho, onde é muito difícil a maioria das bandas que nós temos conseguirem viver só da música, onde é difícil saírem da própria cidade – e Lisboa é uma cidade com dezenas de salas de concertos – é um desafio que eu encaro com grande responsabilidade, a ideia de trabalhar um artista, de conseguir que eventualmente as condições sob as quais eles chegaram à nossa editora consigam aumentar à medida que as coisas acontecem. E isso é muito difícil de fazer, é uma aprendizagem constante.

A ideia é manter sempre um toque pessoal no que fazem, não fazer as coisas de modo industrial, se sentirem que não conseguem abraçar, não pegam?

Exactamente, a única forma que nós temos de trabalhar um lado mais alternativo é não aplicarmos uma fórmula para os artistas que temos e, nesse sentido, cada artista tem determinadas… nós temos alguns artistas que aparecem com álbuns feitos, gravados, produzidos, masterizados, e que sabem tudo o que querem fazer, e temos alguns artistas que gostam desta ideia de existir um diálogo, «e se fizéssemos isto? E se este álbum fosse apresentado aqui? E se vocês gravassem ali?». Toda a gente se tenta organizar para os artistas darem os melhores passos possíveis nas várias áreas, isso é bom para todas as partes. Na Cuca Monga, nos últimos anos, principalmente desde 2019, começou a haver aqui um lado de querer tratar, de tomar conta, de ajudar nesses vários aspectos da carreira.

Há sempre um espírito de comunidade. Quando falamos da Cuca Monga não podemos dizer que é só uma editora, ou é só uma promotora, é isso e muito mais. Como é que vocês se definem?

A Cuca Monga começou por ser um colectivo artístico, depois acho que começou a ser editora no sentido clássico, e depois nalguns casos produzíamos concertos de lançamento, às vezes ajudávamos a marcar digressões, então acho que a Cuca Monga é várias coisas. É um colectivo artístico, no sentido em que existe um núcleo de pessoas que se contagiam umas às outras, que fazem coisas conjuntas, que têm o Conjunto Cuca Monga, tem esse lado de contágio; tem o lado da editora, que é onde temos tentado profissionalizar um bocadinho mais, de arranjar condições para fazer a coisa de forma mais estruturada; e depois esta vertente que temos tentado construir, de produzir alguns concertos, algumas festas. Isto começou a seguir ao covid, o Diogo [Rodrigues] quis fazer uma série de concertos, à qual chamámos Ciclo Cuca Monga, depois fizemos na Escola do Largo a Domingueira, umas matinées ao domingo, e começámos a ganhar o gosto por produzir e quisemos fazer, no ano passado e este ano outra vez, um festival, em Alvalade. Portanto agora há uma terceira vertente da Cuca Monga, de produtora de eventos. E acho que estas coisas se casam todas, de alguma maneira, têm uma razão de ser.

Para tudo isso acontecer e poder funcionar é preciso um espaço. Neste momento, nós estamos a ter esta conversa na nova sede da Cuca Monga, mas quem nos lê não está a ver, fala-nos sobre este quartel-general.

O nosso estúdio antigo em Alvalade, infelizmente, deixámos de o ter durante o covid, então tivemos uma altura em que estávamos órfãos de sala de ensaios. E até foi um momento em que todas as bandas e artistas se separaram uns dos outros, porque desde 2014 tínhamos um sítio comum e é muito mais fácil quando nos vemos todos os dias e ouvimos o que é que uma banda está a fazer, chega um artista, sai outro, ouvimos uma maquete… com o covid isso desapareceu. No ano passado surgiu a hipótese de reabilitamos este espaço onde nos encontramos, que era uma antiga garagem de camionetas do lixo e que agora estamos a reabilitar para ser um estúdio, eventualmente vai conseguir ser um estúdio, de facto, para se poder gravar, neste momento está em modo rafeiro. O que nós fizemos, em parceria com a Junta de Freguesia de Alvalade, no ano passado a ideia de fazer um festival em Alvalade, nós olhámos para este espaço, abrimos a porta desta garagem e decidimos «vamos fazer um palco aqui». Portanto, no ano passado a ideia do Festival era celebrar a nova casa, este ano o que nós queríamos fazer era celebrar a casa antiga. O festival este ano vai passar-se na Rua Centro Cultural, também em Alvalade, que foi onde tudo isto começou. Faz parte do nosso compromisso, e é nossa intenção, de um bairro que nos deu tanto, continuar a fazer a programação neste bairro. E este ano, respeitar as origens, voltar aonde nós começámos.

Em termos de futuro para a Cuca Monga, têm estado a alargar o especto: têm uma rubrica de rádio na Futura, fizeram o Patreon…

O Patreon foi uma ideia que tivemos, o Francisco Ferreira e eu, durante a pandemia, em que demos por nós a ver baús de todos os artistas e tantas são as vezes em que vou ver e-mails e maquetes enviadas e coisas que ficaram por ouvir e que estão perdidas há 8 e 9 anos, coisas engraçadas e que nunca viram a luz do dia, ou vídeos que nós tínhamos a ensaiar… Nós percebemos que, se através da editora conseguíssemos ressuscitar algumas coisas perdidas e arranjássemos algumas rubricas, formas de aquilo ter vida, nós conseguíamos estar a ter uma programação mensal que eu acho que tem interesse para pessoas que seguem a Cuca Monga, que têm interesse em ouvir maquetes e ouvir canções antes de saírem. O modelo que nós arranjámos foi, através das subscrições que as pessoas fazem, temos reinvestido em câmeras para filmar concertos, desde que começámos o Patreon já filmámos uma mão cheia de concertos bem filmados, que depois conseguimos lançar. O caso do Patreon também entra um bocadinho na ideia do colectivo, porque fazemos alguns programas, por exemplo temos um que é o “Pista a Pista” em que podemos ouvir como é que foram gravadas as baterias, guitarras, etc, temos programas em que convidamos músicos para tocarem canções suas, acabámos também a produzir uma data de conteúdos e isso é uma coisa que nós temos todos muito gosto em fazer. E acho que é uma coisa útil para os artistas, por exemplo os Zarco foram dar o concerto deles no Teatro da Trindade e nós organizámo-nos para filmar esse concerto todo. E hoje em dia, felizmente, com estes modelos que nós temos estado a tentar profissionalizar um bocado, temos conseguido arranjar mais condições para filmar, para dar conteúdos que os artistas depois conseguem usar. Portanto, isso eu acho que vai crescer, e uma coisa que nós queremos também solidificar um bocadinho é esta ideia de sermos uma casa onde os artistas podem gravar, onde podem editar os seus álbuns e continuar a produzir concertos. O que eu gostava agora era de conseguir ter uma estrutura boa para melhorar a vida a mais pessoas e para ajudar, porque a nossa ideia é conseguir ajudar mais artistas. 

O cartaz deste ano do Festival já não tem só gente da Cuca Monga. Como foi feita esta programação?

Quisemos escolher artistas que estão a entrar na Cuca Monga e estão a começar a trabalhar connosco, seja o caso da Cláudia Sul (A Sul), seja o caso do Miguel Marôco, que vai lançar um álbum connosco, seja o caso do Gorjão que é do Conjunto Júlio e que também vai lançar um álbum connosco, portanto, quisemos convidar os artistas novos para tocarem. Vai tocar também o Jasmim, que juntamente com a Bia Maria lançaram agora duas músicas pela Cuca Monga, curiosamente essa dupla foi feita num dos ciclos que fizemos pós-covid, desafiámo-los aos dois a fazer um concerto e daí eles fizeram uma música e uma versão retirada desse concerto e vamos lançar isso num 7 polegadas. E depois, os artistas que vão tocar são pessoas ou que nós admiramos, ou cujos caminhos se cruzaram ao longo dos anos e teríamos todo o gosto em contar com elas. O caso do Samuel Úria é uma admiração desde início de carreira, sempre foi um artista a quem olhámos… quando começámos tínhamos o Samuel Úria, tínhamos os Golpes, tínhamos Diabo na Cruz, tínhamos Feromona, tínhamos uma data de artistas para os quais olhávamos com o maior dos respeitos e a ideia de os nossos caminhos se terem cruzado é, para nós, um grande privilégio. O Benjamim, já trabalhámos directa e indiretamente várias vezes, gostamos imenso do trabalho dele. Femme Falafel ficámos a conhecer melhor através da Super Baile, aquela banda que foi feita para tocar nos Santos, e nós editámos o single que eles lançaram, e a partir daí fiquei a conhecer os músicos que fazem parte e gostámos imenso. E portanto o cartaz tem um bocado artistas da Cuca Monga que estamos a começar a lançar, tem artistas que não são recentes – como é o caso dos Hércules e Salto – bandas feitas e que também estão com a Cuca Monga e depois artistas de fora, que pura e simplesmente admiramos e queríamos que eles fizessem parte deste cartaz.

E os Capitão Fausto a tocar os Dias Contados

Exactamente, cujo álbum foi feito naquela rua e portanto fez-nos sentido que existisse esse concerto, porque acho que é uma forma de fazer homenagem e estarmos agradecidos aos espaços. Eu ligo imenso a isso, à ideia de estar agradecido aos espaços, porque a verdade é que aquele sítio específico, e este sítio onde estamos agora, é responsável por uma grande parte daquilo que nós fazemos. E nós, no caso de Capitão Fausto, voltámos para a garagem onde a nossa banda começou e foi uma lição de humildade muito grande, voltámos para 8 metros quadrados, ensaiámos numa sala de 8 metros, por exemplo, para tocar o Gazela no Coliseu. O Gazela que foi feito nessa garagem, portanto com 10 anos de carreira, depois de termos saído de Alvalade – e esse período, essa saída, foi um choque para todos – e de certa forma tivemos essa lição de humildade, de perceber a importância dos espaços e dar valor ao espaço que temos. Portanto, tanto no festival que fizemos no ano passado como o festival deste ano, também há um bocado essa coisa da valorização do espaço onde as coisas acontecem.

 

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