À terceira é de vez. Lustro é o álbum de consagração dos Clã: pop gourmet que chegou a toda a gente.
Uma banda trivial é apenas ela própria. Os Clã são amplos, contêm multidões: são todas as bandas portuguesas ao mesmo tempo. Na aversão ao estrelato, maiores do que o tamanho que lhes coube em sorte, são os Rádio Macau (Manuela Azevedo, uma Xana abstémia). Na voz superlativa, mais o cabecilha perfeccionista urdindo tudo na sombra, são os Heróis do Mar (Hélder Gonçalves, um Ayres Magalhães com óculos). Complicando acordes na Escola de Jazz do Porto, e descomplicando-os na foz da pop, são o Abrunhosa (mas mais magrinhos). Ornatos são quando, anglo-saxónicos na estética, portugalam nas palavras, e Rui Veloso ficam quando, preguiçosos para a escrita, cravam a Tê umas palavrinhas. Nos Xutos se culminam: uma instituição, como o bacalhau e a superbock.
Mais: suspeitamos que os Clã são também iguais a nós. Temos quase a certeza que usam senhas de promoção no supermercado, e que já têm um aparthotel em Tavira reservado para o Verão. Porém, quando sentem o calor de um palco, agigantam-se, ficando do tamanho das lendas da pop. Que o diga Manuela Azevedo, discretíssima na vida real, maior do que a vida quando sobe a um qualquer estrado…
O primeiro álbum- não nos lembramos bem do nome, LusoQUALQUERcoisa – é a carta fora do baralho: nunca mais voltariam ao seu divertido acid-jazz-neo-soul-kitchenette-duplex, onde o groove Bandemónio meets Cool Hipnoise é mais importante do que as próprias melodias. “Pois é” e “Novas Babilónias” rodam na rádio mas o álbum pouco vende e, mais danoso ainda, não se traduz em concertos. Pouco importa. Sairão mais rijos da travessia no deserto.
Em Kazoo, de ’97, assumem pela primeira vez a sua condição de pop-rockers (a que sempre estiveram destinados), trocando as divagações funk-ó-jazzísticas pela parcimónia do formato canção. “Problema de Expressão” e “GTI” são clássicos instantâneos, e muitos fãs dos Clã elegem Kazoo como o seu disco favorito. Ainda assim, foi feito um bocado à pressa, sem o trabalho a filigrana a que mais tarde nos habituarão.
Só no virar na década é que todos os astros se alinham. Lustro, de 2000, é uma pérola pop do princípio ao fim, aliando canções memoráveis com uma produção gourmet. Colherão frutos do esmero: é o seu disco de consagração, vendendo bem, dando que falar.
Se Carlos Tê continua como principal letrista, Lustro é onde se começa a abrir o leque de escribas, integrando mais três pesos pesados: o afim Sérgio Godinho, o bandido Manel Cruz e o titã Arnaldo Antunes. Sangue novo fortalecendo a rijeza do clã.
Os três singles de Lustro ficaram no nosso imaginário colectivo. “Dançar na Corda Bamba”, com a sua bateria madchester e o swag incrível da voz, faz dançar mortos e subsecretários de estado. “H2omem” não gira os pés mas o cérebro, o hemisfério esquerdo tropeçando nos sapatos do direito. “Sopro no Coração” concorre com “Problema de Expressão” como a canção mais emblemática dos Clã. As suas teclas magoadas fazem chorar blocos de betão.
Mas os singles são apenas a ponta do icebergue. É essa a grandeza de Lustro, a de não ter qualquer palha para encher. “Amigos de Quem” tem qualquer coisa de tango macabro: facas e sangue e Carlos Gardel. “Farenheit” é tensa como um motim, sirenes de polícia e estátuas a arder, queimando a alcatifa da sala. Onde “Lado Esquerdo” é etérea e sussurante como um sonho acordado, “Curioso Clã” é saltitante e sincopada como uma lenga-lenga infantil, o mais próximo que Manuela Azevedo alguma vez esteve da Viviane dos Entre Aspas. “Bem versus Mal” é pesada e opressiva como uma culpa no peito; “Sangue Frio” é diferente: Django Reinhard tocando viola ao relento, a lua cheia iluminando a velha caravana…
Lustro é assim, melódico e diverso, elegante e trauteável. A palavra-chave é bom-gosto: nos arranjos, nas melodias, nas palavras. Tudo tem um calor analógico por aqui: os dois teclados vintage, o som redondo da guitarra (que afinal é um baixo afinado uma oitava acima), o grão da voz de Manuela, amadurecido em pipa de carvalho, ganhando textura e corpo. Os Clã como referência incontornável da pop portuguesa começam em Lustro.
O caminho nunca foi fácil: quando se é demasiado alternativo para o mainstream, e demasiado pop para banda de culto (aquilo a que nó em teoria crítica designamos de “o limbo fodido”), leva-se porrada por todos os lados. Mas o que não mata engorda (e o leque de canções canónicas foi sempre crescendo). Quando a integridade artística é inabalável, a procura desinteressada da beleza é tudo: móbil, prémio, salvação…