Ao quarto disco de estúdio, os Clã resolveram reinventar-se. Ainda bem que assim foi. O resultado deu pelo nome de Rosa Carne, o disco inesperadamente lírico que nem toda a gente soube ouvir e entender.
Sabemos bem que Rosa Carne foi um disco em contramão. Em 2004, o que se esperava era que a banda da cidade invicta desse ainda mais corda ao sucesso dos discos anteriores e repetisse, eventualmente, a receita desse triunfo recente. Assim não foi. Trocaram as voltas às expectativas e fizeram um álbum que deixou de boca aberta muitos dos seus seguidores. Não tanto de espanto e de agrado, talvez mais de estupefação e incredulidade. O que lhes aconteceu, afinal? O que foi feito da fúria que os levou a dançar, com sucesso, na corda bamba? A certas perguntas, uma única resposta, tantas vezes óbvia: quiseram seguir outro caminho. E assim foi com Rosa Carne.
O quarto longa duração da banda de Manuela Azevedo e companhia resolveu seguir outros caminhos, experimentar outras sonoridades, desenvolvendo um lado estético mais soturno, mas também mais requintado e estilizado. O disco desenrola-se como se de um novelo de fino material se tratasse, bem pensado, sem nós nem pontas soltas ou quebradiças. É um trabalho meticuloso. Apesar de ser longo (são catorze, os temas que o compõem), a ideia que fica é que nada nele existe em excesso, nada se desperdiça ou tende a sobrar, tudo se interliga de maneira segura e cómoda. Nunca, como nesse trabalho, os Clã pareceram tão adultos. Atingir a idade suprema do amadurecimento sem produzir um som chato, insípido e sobranceiro, não é para todos. Esse talvez seja o maior elogio que se pode fazer ao disco ainda hoje, passados mais de dúzia e meia de anos.
Rosa Carne é um disco com um universo lírico muito tenso, mas ao mesmo tempo bastante feminino. Transporta, a bem da verdade, uma sensualidade esquiva, intensa, esquisita, por vezes violenta. Para que assim fosse, uma autêntica constelação de estrelas disse sim à chamada, e as letras de Carlos Tê (obviamente), do ex-titã Arnaldo Antunes, de Sérgio Godinho (as afinidades e as amizades não costumam falhar), de John Ulhoa (dos ótimos Pato Fu , banda do país irmão do outro lado do Atlântico), de Adolfo Luxúria Canibal e ainda de Regina Guimarães (Três Tristes Tigres) foram excelentes contributos de qualidade a somar às composições de Hélder Gonçalves.
Não é tarefa simples ou fácil escolher as canções que mais se destacam em Rosa Carne. A coesão do disco, tanto melódica como rítmica (com uma ou outra exceção), é o principal travão a essa por vezes tão natural seleção. Se formos instados, mesmo assim, a designar algumas, talvez surjam “Competência Para Amar”, “Madalena em Contrição”, “Carrossel dos Esquisitos”, “Gordo Segredo”, “Pas de Deux” e “Aqui na Terra” na dianteira. Talvez…
Rosa Carne continua a ser, de alguma maneira, um estranho objeto sonoro na já crescida discografia dos Clã. Fica-lhe bem essa singularidade, esse esgar desusado e áspero. Diz-se que o álbum se fez assim por via da banda sonora que os Clã fizeram para Nosferatu, o mítico filme de Murnau dos anos 20 do século passado. Talvez seja exagerada, essa influência. Enfim, isso também pouco ou nada importará. O certo é que o disco foi bastante bem recebido pela crítica (e ainda assim acontece, como se vê), embora algum do público granjeado através dos álbuns Kazoo e Lustro acabasse por lhe torcer o nariz. Talvez hoje, em retrospetiva, saibam dar o braço a torcer, reconhecendo-lhe os óbvios predicados. Nunca é fácil substituir a crueza do pop-rock pela delicadeza da orquestração. No entanto, por vezes até compensa.