A musa inspiradora de Chico não retoca a maquilhagem há muito tempo. Resultado: o que o músico vem fazendo há mais de duas décadas não tem sofrido grandes alterações.
“Nunca fales tão bem de alguém, que não possas falar mal mais tarde. Nunca fales tão mal de alguém, que não possas falar bem mais tarde.” in O Bom Déspota, José Eduardo Agualusa.
No que diz respeito aos últimos trabalhos da discografia de Chico Buarque, a questão que se pode colocar será a de saber se a colagem a um som e a uma forma de compor que permanecem inalterados há tanto tempo, é forçosamente uma circunstância má. E a resposta, a meu ver, é não. Não é má, mas gostaria de detetar, a cada disco lançado, uma ou outra ponta de novidade, ainda que não me atreva a pensar (nem por sombras, isso seria pedir demasiado, seria pedir o que o artista nunca poderia dar) que o meu tão estimado carioca pudesse alinhar ao lado do mano Caetano, por exemplo, sempre pronto a romper barreiras e a experimentar caminhos inusitados. Mas que diabo, desde o início da meia-idade que Chico Buarque não dá sinais de evolução, de vontade de crescer artisticamente para outros lugares e outras paisagens sonoras! É, a esse nível, o mais perfeito Peter Pan da música popular brasileira, descendente direto do pai João Gilberto, que sempre gravou o mesmo disco (sim, há também aqui um pouco de exagero da minha parte) durante toda a sua vida.
Cresci a ouvir Caetano, Milton, Gil, Chico, Tom Zé, entre tantos outros, e permaneço atento a tudo o que vão fazendo. No caso particular de Chico Buarque, cada vez mais bissexto no que toca a produções musicais, já me habituei às suas idiossincrasias, por isso não estranho nem lamento muito o (quase) “mais do mesmo” que nos vai impondo há cerca de vinte e cinco anos. No entanto, cada novo disco de Chico traz refinamento, traz mestria artesanal no ato de construir canções perfeitas e isso não deixa de ter em mim um notável efeito redentor. É por tudo isto que Caravanas me trouxe largos sorrisos ao rosto quando o ouvi, por duas vezes seguidas, enquanto caminhava na praia, em direção ao fim das férias. Em certa medida, devo-lhes (ao álbum e a Chico) uma espécie de prolongamento desse estimável tempo solarengo que tão depressa se esgota, porque nele pude encontrar momentos que me fizeram abstrair de tudo, fugindo assim aos imperativos dos minutos e das horas.
Caravanas abre com aquela que é a melhor canção de Chico Buarque dos últimos tempos. Chama-se “Tua Cantiga” e o mínimo que se pode dizer é que já nasceu clássica de ternura, de tom, de melodia, de afago à alma. É tão bonita que chega a comover. Depois segue-se “Blues da Bia” a explorar territórios já antes tentados em trabalhos anteriores e sem resultados muito meritórios. Ao terceiro tema, novo belo momento. As preocupações literárias que vão ocupando os anos mais recentes de Chico parecem, de alguma maneira, ter eco em “A Moça do Sonho”, tema antigo, surgido no disco Cambaio, que Chico nunca chegou a colocar em disco. Na letra cantada, vou pensando em Alice e na maravilha de país que habita, por exemplo. Sonhos, memórias, locais imaginários com “relógios que rodam para trás”. O tempo e os seus labirintos, portanto, tão do agrado do compositor. Segue-se “Jogo de Bola”, tema que nada traz de interessante, coisa que já não direi da escorreita “Massarandupió”, levíssima valsa que evoca o passado (o tempo, mais uma vez, agora geograficamente situado “Num mundaréu de areia à beira-mar” onde a “meninice” se foi arrastando até se findar). Já em “Dueto”, com a neta Clara, Chico assina outro bonito momento, dos melhores até. Adoro como termina, num name dropping de termos que se encontram nos ares sociais da internet que unem avô e neta, mas também ambos ao mundo. Ao sétimo tema (são apenas nove as canções de Caravanas), um bolero à Chico, que troca o português pelo castelhano mais conveniente. Próximo do fim, os amores, desamores e boatos em novo bolero, agora já não tão típico, já mais estilizado. “Desaforos”, é assim que se chama o tema, embarca em assuntos muito queridos a Chico e à sua vibrante poética sentimental. Até que “Caravanas” coloca ponto final em Caravanas. É a única canção de cunho político, onde o racismo, os refugiados, os medos dos tempos que correm, discorrem da pena do cantor. Contrasta em absoluto com quaisquer outros versos cantados no disco. É mais uma boa canção, mas o que apetece mesmo é voltar ao início, à magnífica “Tua Cantiga”, que de tanto a ouvir já a fiz minha.
Chico voltou a ser Buarque. Caravanas passa como se passado e presente estivessem intimamente ligados. O futuro deve ser um lugar inóspito para o carioca. Recusa-se a dar um passo que seja nessa direção. E assim, ao mesmo tempo que nega assumir uma qualquer outra postura artística, Chico vai continuando a ser clássico. E é bom voltar aos clássicos! É bom voltar a ouvir o Chico de sempre! Basta fingir que estamos a ouvi-lo pela primeira vez.