O mestre da melancolia reinventa-se com uma deliciosa comédia negra.
Os anos 80 não estavam a ser meigos com Cohen. Se Recent Songs fora injustamente ignorado, a infâmia subira com Various Positions: descartado pela Columbia Records, que recusou a própria edição do disco nos Estados Unidos. A carreira de Cohen parecia ter chegado a um beco sem saída. Até que aparece o sublime I’m Your Man, para muitos a obra-prima de Cohen, e um sucesso inesperado.
Cohen já havia tentado a sua renovação estilística emVarious Positions, começando a brincar com sintetizadores, mas o esboço fracassara, afogado numa imensa banheira de azeite. Leonard não falharia o segundo take, reinventando-se agora com total eficácia. Para os amantes do Cohen clássico, acústico e austero como um mosteiro budista, I’m Your Man foi um choque: a pura Hannah Montana transformando-se na puta Miley.
A sua voz era agora grave e profunda, o resultado de “cinquenta mil cigarros e várias piscinas de whiskey”. A guitarra clássica desaparecera, substituída por sintetizadores e caixas de ritmo, um sacrílego convite à pista de dança. O trovador intimista dera lugar ao cantor pop, Jacques Brel fazendo karaoke na discoteca de província. As próprias letras eram diferentes, menos poéticas e românticas, mais acessíveis e espirituosas.
Como raio uma transmutação tão obscena resultou num dos discos maiores do canadiano?
Em primeiro lugar, porque a reinvenção foi total. Não era o poeta baladeiro a usar o sintetizador Casio do filho para parecer moderno; era uma voz artística inteiramente nova, recauchutada da cabeça aos pés, e, por isso, consistente.
Em segundo lugar, pelo génio das canções, clássicos instantâneos como “I’m Your Man” e “Tower of Song”, temas de tal forma sólidos e memoráveis que resistem a qualquer roupagem, mesmo a semi-kitsch deste álbum. I’m Your Man pode ser o disco com a maior distância de sempre entre o génio da sua escrita e o não-génio da sua produção. Não faz mal: a imaginação das suas melodias e o rigor das suas palavras são tudo o que basta para o elevarem bem alto na “torre das canções”.
I’m Your Man tem provavelmente as letras mais espirituosas que alguma vez Cohen escreveu. Namoro com a synth pop, letras abertamente engraçadas: a melencolia de Cohen parecia ter chegado ao fim. Nada mais ilusório. Alguém disse que Cohen escreveu sempre sobre o mesmo tema: a traição e o desespero. I’m Your Man não é excepção. Se a comédia é transversal ao disco, é uma comédia ácida e negra, a única forma tolerável de olhar para um mundo absurdo e desencantado. I’m Your Man é a piada que alguém conta num velório; ou as meias do viúvo, brancas, com raquetes, obscenamente engraçadas naquele contexto.
Aliás, o tema de abertura, a demente “First We Take Manhattan”, define o tom apocalíptico que atravessará todo o álbum. Por debaixo da sua leveza à Pet Shop Boys, esconde-se o retrato da mente de um extremista, conspirando na sombra a sua vingança. Cohen confessa o seu fascínio pelo espírito dos fundamentalistas, invejando a simplicidade do seu mundo a preto e branco, cobiçando a tranquilidade das suas certezas. A sua monstruosidade ética é, pelo menos, um éden da “descomplicação”, jardim florido onde Cohen nunca soube viver.
“Everybody Knows”, Boney M para intelectuais, é pincelado com os mesmos tons lúgubres, elencando os vícios eternos da humanidade, risíveis, sem glamour algum, boçais lugares-comuns. A dissonante e experimental “Jazz Police” é ainda mais sombria na sua alucinante distopia.
As relações da intimidade não serão mais soalheiras, nunca o foram em Cohen. Em “Ain’t no Cure for Love” o amor é letal mas inescapável pois “não há nenhuma bebida, nenhuma droga, nada suficiente puro para ser uma cura para o amor”. O espectro da SIDA como a mais terrível das metáforas. O saxofone manhoso de entrada, banda-sonora de porno barato quando o canalizador toca à campainha, só adensa o pessimismo.
A sedutora “I’m Your Man” regressa a outro dos velhos temas de Cohen: a intimidade como arena de poder, jogo de dominação e submissão onde nunca se ganha. O sintetizador decadente de festa de casamento reforça o quanto é risível esta tentativa desesperada de salvar o que já não pode ser salvo, o que nunca pôde ser salvo.
O disco acaba com a hilariante “Tower of Song”, a melhor canção de sempre sobre as próprias canções. Neste divertido blues, Cohen assume-se como um dos inquilinos da torre das canções, “cem pisos abaixo” de Hank Williams, “que tosse a noite toda”. Diz-nos que o seu destino como habitante da torre era inevitável, “pois nasceu com o dom de uma voz de ouro”. E depois toca aquele mítico solo de sintetizador, com apenas um dedo, simples e mágico como uma criança a brincar, como que nos explicando que a grande força da música pop sempre foi a sua mágica simplicidade, a simplicidade de uma canção de Hank Williams.
O tema não é só tremendamente engraçado. Mostra-nos também que Cohen se assume como um dos nossos, reclamando o seu lugar na tradição da música pop, e não no cânone da alta cultura. Recorde-se que Cohen começou a sua carreira como poeta e romancista consagrado, só ingressando tardiamente no mundo dos discos. Mas não é com Keats e Yeats que ele procura o parentesco. É com o nosso Berry, com o nosso Dylan, com o nosso Bowie. É com o puto de dezassete anos que está neste momento algures a projectar o novo piso da torre das canções. Para mim, que considero a música pop como a grande poesia dos séculos XX e XXI, acho comovente a sua escolha de fileiras.
Mas até o tema mais optimista de I’m Your Man começa sorumbático: “os meus amigos partiram e o meu cabelo é grisalho / sofro nos lugares onde um dia brinquei”. Não há volta a dar: o bom e velho Cohen será sempre o nosso príncipe da melancolia. Mas isso já todos sabíamos. O que os mais distraídos insistiam, teimosos, era em não ver o que sempre esteve lá afinal: o seu finíssimo sentido de humor. Este disco, abertamente espirituoso, enterra de vez o mito do seu miserabilismo, consagrando Cohen como um dos mais engraçados escritores de canções.
Woody Allen disse um dia: “odeio a realidade mas ainda é o melhor sítio para se comer um bom bife”. I’m Your Man é mais ou menos isso, narrando com inigualável mestria a beleza e horror do mundo.
Como um homem de fato comendo uma banana.