A bagagem, na música e na vida, conta muito. American Dream surge como o álbum de regresso de uma família outrora desfeita, disco de reconciliação do patriarca com a indústria, pedaço pop que ainda se pretende relevante. Uma hora depois e vários suspiros de alívio volvidos, uma conclusão: os LCD Soundsystem estão de volta para ocupar de novo o lugar que nunca deixou de ser deles.
A história é rica, muito rica, pode ser resumida mas ficará sempre aquém do fervor de quem a viveu na primeira pessoa – em Nova Iorque, de Murphy, ou numa qualquer pista de dança ou sala de espetáculos deste e de outros mundos. Na Lisboa que nos é mais próxima, os LCD Soundsystem foram pontas-de-lança da melomania dançante da primeira década dos anos 2000, nome essencial nas noites de clubes como o fogoso Incógnito, os saudosos Bedroom e Suave, o sempre presente Lux. Partilharam uma época com os The Strokes, os Interpol, toda uma série de bandas que pegou em guitarras e, ligando as seis cordas à eletrónica, ao punk ou à pop, deixou para trás fenómenos como o ‘nu-metal’ e criaram um mundo e uma estética tão ampla quanto, percebemos agora, efémera. Alguns nomes desta nação indie sobreviveram, mas uma simpática parte não teve arcaboiço para ser mais que companhia passageira de copos, amores e desamores – e isso já não é nada mau.
Os LCD acabaram em 2011, depois de fazerem história e antes de entrarem num qualquer hipotético labirinto criativo. This is Happening, terceiro e, à época, último de originais, havia saído no ano anterior, e o apoteótico e emocionante adeus no Madison Square Garden (registado em filme), na cidade de sempre e de todos os sonhos, Nova Iorque, podia e devia antever um hiato definitivo. Poucos anos depois, e um punhado de conversas com Nancy Whang e Pat Mahoney (figuras muito, muito importantes nos LCD) depois, Murphy quis voltar e fez um toca a reunir. E aqui entra David Bowie: James Murphy deveria produzir Blackstar, aquele que viria a ser o último álbum de originais, em vida, do camaleão, e na altura em que ambos falaram e um hipotético regresso dos LCD Soundsystem veio ao de cima, Bowie, contam os relatos, foi perentório: “Se isso te inquieta, é porque o deves fazer. Com a inquietação surge o bom trabalho”, terá dito.
American Dream não é, está bem de ver, uma obra qualquer. A discografia dos LCD Soundsystem é uma das mais imaculadas de décadas recentes: a três álbuns de estúdio de requinte à prova de bala juntam-se vários EPs e lançamentos isolados – inclusive uma portentosa obra encomendada pela Nike – e, urge admitir, raros são os regressos de bandas ao ativo em anos recentes que tenham gerado novos álbuns de estúdio enriquecedores de património (de cabeça, apenas os nomes de Suede e My Bloody Valentine surgem no imediato). Primeiro suspiro de alívio: American Dream está à altura do passado. Segundo suspiro, este já de contentamento e alguma surpresa: American Dream é um dos melhores álbuns dos LCD Soundsystem, provavelmente o menos imediato de todos mas o mais amplo, absorvente e exigente na perceção total do detalhe.
“Oh Baby” arranca a viagem de mais de uma hora. É um tema lento e futurista, uma introdução onde os LCD Soundsystem metem os sintetizadores encorpados a namorar com a voz de James Murphy. Depois, “Other Voices” é um clássico instantâneo, a lembrar “Us vs. Them”: há cowbell – apenas os LCD Soundsystem e os The Rapture têm licença eterna para o uso do instrumento -, ginga e punk digital. “I Used To”, logo depois, é das faixas menos impactantes e diferenciadoras de American Dream, mas “Change Yr Mind”, logo depois, podia ser um tema de Prince – e isso é um elogio que não se faz a qualquer um.
O tribalismo digital de “How do You Sleep” faz a ponte para os três temas já conhecidos do quarto álbum dos nova-iorquinos: “Tonite” é a faixa mais imediata de todo o disco, e não sendo a melhor é uma das mais eficazes para o baile rock; “Call the Police” sim, tem tudo, vai em crescendo, incorpora mudanças várias ao longo do mesmo tema, tem uma linha de baixo maravilhosa e é uma canção incrível; “American Dream” , logo depois, é triste, como se este sonho não mais fosse que uma utopia, mas logo depois há “Emotional Haircut”, uma canção que poderia ser adotada por claques de futebol no acender das suas tochas (e que lembra, e muito, o fervor rock da versão – de 2007 – dos LCD para “No Love Lost”, dos Joy Division”).
O fim da viagem, à décima faixa, é feito com “Black Screen”, o momento mais soturno do disco. São mais de dez minutos de sintetizadores num registo minimal, de Murphy a dirigir-se a Bowie e a recordar os emails trocados e as palavras do mestre lidas no ‘black screen’ do computador. É um tema maravilhoso e faz o que os LCD Soundsystem sempre conseguiram fazer: é um tema emocionante, e raras são as bandas com foco na pista de dança mas capacidade para nos fazer emocionar. A riqueza cultural de James Murphy e comparsas e a bagagem musical e afetiva são, aqui, os elementos diferenciadores.
James Murphy fez um disco de regresso a casa. American Dream é como uma reunião de família, e mais: é o regresso às loucas noites da década 2000-2010, viagem ancorada, com a supervisão celestial de Bowie, num trabalho esteticamente e musicalmente tão vanguardista como os LCD sempre foram. Se o passado foi lá atrás, a verdade é que com presentes destes, a saudade não mais é que um pretexto para querer morder o futuro.