Rejubilemos! Charles Bradley tem um disco novo. E a cada disco novo de Charles Bradley, o mundo fica um lugar um pouco melhor.
Apelidado de Screaming Eagle, consagrado como a Soul of America, ele é por direito próprio o maior ícone da soul dos nossos dias (partilha o altar com Sharon Jones). Depois de uma vida de dificuldades – percorreu a América em biscates para sobreviver até que passou a fazer da música ofício, como imitador de James Brown, tocando em pequenos bares, com o pseudónimo Black Velvet – o dia da salvação surgiu quando o patrão da Daptone – editora que, no século XXI, se encarrega de assegurar que os ensinamentos da Motown e Stax não ficam para peça de museu – o descobriu e fez dele a estrela que merece.
Na voz, rouca mas imponente, equilibra todo o peso de uma vida madrasta com a mais verdadeira gratidão. As agruras que sofreu podiam ter feito de Charles Bradley um homem amargo, mas ele é um poço inesgotável de amor – Amor Supremo, que abençoa e muda os homens, força motriz que conduz no caminho certo, mesmo quando só se leva porrada do mundo. É um homem grato, que reconhece que a sorte acabou por lhe sorrir, e canta a simples alegria de estar vivo. Com uma forte veia de pregador, a sua igreja é o palco e tem aproveitado os últimos anos para devolver ao mundo amor e esperança e para mostrar que, por mais vergastadas que se leve, um homem consegue andar com a espinha direita.
Em 2011, com 62 anos, editou o primeiro álbum e a sua vida mudou por completo. De repente, o sexagenário humilde, que em adolescente chegou a ser sem-abrigo, deu-se a conhecer ao mundo – e num ápice inscreveu o seu nome no Grande Livro da Soul. Nos dois primeiros álbuns, Bradley cantava mais as dores do coração e dores da vida, sonhos desfeitos, corações partidos. Agora, sentimo-lo um pouco mais leve, já expurgou quase todas essas mazelas e está mais apostado em espalhar o seu evangelho de amor acima de todas as coisas.
E fá-lo em grande estilo, com uma pureza soul inigualável. Em boa parte, essa responsabilidade é da Daptone – casa de grupos como os Dap Kings (e Sharon Jones), The Budos Band ou Menaham Street Band – mas principalmente de Thomas Brenneck, produtor e guitarrista, autor das melodias que fazem os discos de Charles Bradley soar ao mesmo tempo contemporâneos e retro. Não é fácil reinventar a soul sem a fazer perder a essência intemporal, mas o génio de Brenneck consegue. Faz a sua metade, à qual se junta a voz – e personalidade – de Charles Bradley e, quando isso acontece, temos os melhores discos de soul dos nossos tempos.
Changes é um desses. Um disco bastante coerente, no qual todas as canções são boas. Mas há umas que se destacam. Logo à cabeça, “Changes”, uma versão arrepiante de uma música de 1972, relativamente azeiteira, dos Black Sabbath. A interpretação de Charles Bradley, rugosa mas cheia de substância, é mil vezes melhor que o original, mas bem podia ter sido ele a escrever aquele lamento. “Change For The World”, com uma entrada épica da secção de metais, é um manifesto sobre a urgência em cessar os ódios e simplesmente dar amor. “Ain’t It a Sin”, soul-funk clássico, é outras das grandes canções deste álbum, com Bradley a ensinar-nos como manter a dignidade quando o caminho é pedregoso.
No campo das baladas cheias de brilho, “Crazy For Your Love”, “Things We Do For Love”, com coros a fazer lembrar os dias da rádio, ou “You Think I Don’t Know”, guiada por um piano encantador, são canções que fazem desaparecer de imediato todas as nuvens.
As duas primeiras canções (“God Bless America” e “Good To Be Back Home”) são declarações de amor à pátria, que às vezes é bruta outras vezes doce, mas é sempre lar doce lar, depois de andar pelo mundo a espalhar o seu evangelho e de sentir verdadeiramente o que quer dizer saudade. E exemplificam também um modelo alternativo de “sonho americano”, patente nesta curta mas já prolífera carreira que, com um espólio de apenas três discos, já lhe garante um lugar ao lado dos maiores, de outras eras, sem se envergonhar.
Este terceiro álbum vem dar razão ao epíteto de Soul of America (documentário incrível de Poull Brien). Charles Bradley conquistou por si próprio o estatuto de herdeiro legítimo de James Brown, Carregador da Chama, de uma tocha outrora empunhada por Otis Redding ou Curtis Mayfield.
Além da voz, ponto distintivo de Bradley, também a personalidade é fulcral no molde de onde se criou um ícone. Puro e genuíno, sensível sem ser lamechas, instintivo e verdadeiro, resistente, inquebrável. Magnificamente acompanhado por um super grupo, apropriadamente baptizado Extraordinaires, Charles Bradley é um artista ímpar que, cada vez que lança um disco, faz do mundo um lugar menos feio. Changes é mais uma dessas dádivas. Façamos a devida vénia.