Tinha 16 anos quando comprei Cores, Nomes. O disco havia saído no Brasil no ano anterior, e com ele Caetano Veloso conseguia o segundo disco de ouro da sua já considerável carreira. Para mim, e até hoje, Cores, Nomes representa algo de ainda mais valioso do que esse precioso minério.
Os anos 80 foram excecionais para o baiano, e depois de entrar neles com o magistral Outras Palavras, uma espécie de irmão gémeo sonoro chegava ainda mais radiante, cheio de luz, celebrando um tempo de início de viragem na ditadura militar brasileira, mais permissiva agora, embora ainda existente. Cores, Nomes é um disco que transporta uma enorme dose de otimismo, exaltando a beleza das coisas, dos lugares e das pessoas. O meu apreço pelo disco é total, e vai desde a capa (a capa recortada e o encarte interior fazem um todo de interessante valor artístico) até a cada uma das suas doze canções, obviamente. Entre participações várias (Djavan, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil e João Donato) e uma regravação idílica de uma canção de sucesso do brega Peninha, este Cores, Nomes revela um Caetano Veloso no topo do seu génio. Tudo aqui é brilho e encantamento, pelo que ouvir este trabalho já com mais de 30 anos continua a ser uma delícia. Siga estas linhas e saiba as razões do que afirmo.
“Queixa” abre o disco, e desde os primeiros acordes, desde as primeiras palavras cantadas que percebemos estar na presença de uma obra prima. A canção fez sucesso nacional, e esse facto ensombrou algumas outras, imerecidamente. “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca”, por exemplo, é um dos casos. A canção, a começar pelo título, marca bem alguma democratização que se sentia crescente, e versos como “E ele me olhou / De cima e disse assim pra mim: / Delfim, Margareth Tatcher, / Menahem Begin / Política é o fim / E a crítica que não toque na poesia /
O Time Magazine quer dizer / que os Rolling Stones / Já não cabem no mundo do / Time Magazine / Mas eu digo (ele disse) / Que o que já não cabe é o / Time Magazine / No mundo dos Rollings Stones forever / rockin´and rollin’ / Por que forjar desprezo pelo vivos / E fomentar desejos reativos /Apaches, punks, existencialistas, / hippies, beatniks / De todos os tempos, / uni-vos”. O apelo a uma forma mais aberta de compreender o mundo, a uma nova era de comunhão e de entendimento, parecia estar ao alcance de um desejo, e a esperança em conseguir esse tão pretendido momento chegaria pouco tempo depois. Cores, Nomes anuncia essa nova era, e funciona, no seu todo (e a canção “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca” em particular) como uma espécie de hino ainda sem pátria atribuída. Segue-se “Trem das Cores”, canção maior do vastíssimo repertório de Caetano Veloso, bela, belíssima, acima de qualquer padrão de qualidade conhecida. Depois, e apenas acompanhado por um alaúde, Caetano canta “Sete Mil Vezes”: “Sete mil vezes / Eu tornaria a viver assim / Sempre contigo / Transando sob as estrelas”. Cores, Nomes é um disco onde a linguagem do corpo e do sexo se fazem notar, não apenas nas letras de algumas canções, como também na apresentação do disco ao vivo, em que Caetano Veloso ia beijando (na boca), um a um, todos os elementos da banda que o acompanhava em cima do palco. Aliás, na capa e encarte do disco, e por força dos recortes que fazem parte do projeto gráfico de Cores, Nomes, Caetano dá um beijo na boca a seu pai, Seu Zé, falecido em 1983. As solarengas “Coqueiro de Itapoã” e ” Um Canto de Afoxé Para o Bloco do Ilê” finalizam o lado A do disco (escrevo sobre o álbum com a memória em vinil que tenho dele), e é de notar a particularidade de ser neste último tema que Moreno Veloso, o primeiro filho do cantor, se estreia no mundo da música, em parceria com o pai, emprestando a sua voz de criança (tinha 9 anos de idade na altura da gravação) aos versos da canção.
O lado B abre com “Cavaleiro de Jorge” e logo a seguir chega “Sina”, um dos melhores momentos do disco. A canção é de Djavan, que a canta com Caetano, deliciosamente. Mais do que um belíssimo tema, “Sina” é uma homenagem a Caetano Veloso, introduzindo o verbo caetanear no universo da língua portuguesa: “O luar / Estrela do mar /
O sol e o dom / Quiçá / Um dia, a fúria / Desse front / Virá lapidar o sonho / Até gerar o som / Como querer / Caetanear / O que há de bom”. Quem nunca cantou estes versos, não sabe o que perdeu… Outro clássico surge com “Meu Bem, Meu Mal”, que Gal Costa gravou e ainda hoje canta em muitos dos seus espetáculos. Apenas a voz de Caetano e o piano do grande Tomás Improta. Nada mais é necessário. Segue-se “Gênesis”, canção que revive, por assim dizer, os tempos d’os Doces Bárbaros, uma vez que Gal Costa, Gilberto Gil e a mana Bethânia se juntam a Caetano para a interpretarem. Até que chega “Sonhos”, canção que Caetano tornou imortal, e que fez (e faz) parte integrante da minha vida sentimental. A música serve inúmeros propósitos, como todos sabemos, e alguns são (ou podem ser) inconfessáveis, pelo que não adianto mais sobre o assunto. A canção em causa é de Peninha, de 1977, e foi o seu primeiro grande sucesso, incluído na novela “Sem Lenço, Sem Documento”, título retirado da emblemática “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso. Peninha sempre foi considerado um cantor brega, no entanto isso não impediu (nem impede, até aos dias de hoje) que Caetano convivesse com essa realidade musical tão diferente da sua, e que tivesse transformado “Sonhos” numa outra canção, aqui despida até ao osso, apresentada só com voz e violão. É um deslumbramento, acreditem! Até que o disco chega ao seu fim. “Surpresa”, onde se destaca o piano de João Donato a sobrevoar os versos cantados por Caetano, foi composta por ambos e encerra Cores, Nomes de forma tão subtil, quanto deleitosa.
Marco da carreira do genial baiano, Cores, Nomes é um disco que me adotou. Esteve sempre comigo, e eu com ele. Somos unha e carne, cabeça e coração. Estamos juntos há mais de 30 anos. Ainda hoje sei de cor todos os seus versos, todas as sua canções. E isso não pode ser obra do acaso.