Mellow Gold é um álbum épico, daqueles que mudam uma vida. Permitam que o apresente. Mellow Gold, muitas vezes tido como o primeiro disco do grande, ilustre, fantástico, Beck, nasceu no ano da graça de 1994 e já foi um terceiro filho. Lembram-se da capa? Assustadora e, vá, algo fálica. Como se o autor pretendesse fazer um statement relativamente à sua forma inusitada de escrever letras e de assumir sem medos o controlo dos instrumentos que toca (são alguns, o tipo percebe daquilo). A capa dá a ideia de aparecer como um aviso “se abrirem esta caixa e ouvirem o disco, estão por vossa conta” (o próprio cd tem uma imagem de um boneco enforcado, muito Rammstein, não?).
A nível particular, permitam-me que partilhe a forma como este álbum me afectou. A memória para datas é fraca, mas vou tentar dar um lamiré cronológico. No mesmo ano da graça de 1994 ou 1995, nos meus anos ou pelo Natal, o meu primo e padrinho ofereceu-me este álbum. Devo informar previamente e com algum embaraço que tinha recebido no mesmo ano a minha primeira aparelhagem com cd’s e o Hit Parade do ano corrente. Avançando rapidamente e passando tábua rasa pelo Hit Parade, as aparelhagens do início dos anos 90 eram verdadeiras máquinas, colunas com um som preciso e distintivo e um tamanho colossal. Se hoje olhássemos para ela, diríamos que poderá ter espaço para também ter uma máquina e tirar umas bicas. Uma entrada de CD’s, dois decks de cassetes e, claro, rádio (muitas cassetes gravei eu entre decks)! Se conhecem o álbum de que vos falo, imaginem ouvi-lo nesta aparelhagem, priceless!
Voltando ao tema, o meu primo oferece o Mellow Gold a uma pré-adolescente de cerca de 12 anos, cujo conhecimento musical se limitava a ter de ouvir as músicas da Madonna que a minha irmã ouvia (quero dizer em minha defesa que não podia evitar e que hoje posso considerar esta situação como bullying familiar). Lembro-me com bastante clareza da primeira vez que ouvi o CD: para além da música “Loser”, tudo o resto me chocou. E quando digo choque, é mesmo semelhante àqueles choques de pôr os dedos na ficha, o que não foi necessariamente bom, embora, vá, um pouco excitante. Não queria acreditar. Pensei: “como é que o meu primo pode oferecer este CD que é tão… estranho! A uma miúda!”. Juro que fiquei no limiar da indignação. Não percebia aquela música, mal percebia as letras e a sequência do álbum fazia com que a cada música eu entrasse num estado de transe psicadélico onde perdia a noção da minha identidade.
Estranhando ao início e entranhando depois, o álbum foi-me conquistando, embora lentamente. O álbum começa com a “Loser”, e segue-se com uma série de músicas que, se não tiverem uma asneirola no título, têm certamente na sua composição. “Loser” é uma música mítica e infelizmente ouve-se pouco. Preza-se o bom gosto de um dos colocadores-de-música desta casa que numa das festas a colocou (o público delirou, hey, é melhor repetir). O ritmo desta música fez-me desejar decorar a letra como se a minha vida dependesse disso, e, mais rapidamente do que a matéria de Físico-química, já eu acompanhava o Beck lá fechada no meu quarto (a mãe a pedir para baixar o som, ah, tão anos 90!): “You get a parking violation and a maggot on your sleeve; So shave your face with some mace in the dark; Savin’ all your food stamps and burnin’ down the trailer park!”
Agora… em relação às músicas seguintes, confesso que foram de difícil digestão. Ouvindo agora o álbum, consigo descortinar o motivo. A pré-adolescência é o despontar de toda uma série de questões sobre a vida. E principalmente sobre uma parte de nós: os sentimentos. E caramba, desde “Pay No Mind (Snoozer)”, passando por “Soul Sucking Jerk” e aterrando em “Sweet Sunshine”, é toda uma descida pelas entranhas do depressivo. Mas calma, não é depressivo-de-cortar-pulsos como Nick Drake, é mais um depressivo-vamos-lá-rebentar-com-qualquer-coisa. Mas de repente ouvimos “Beercan” e a coisa dá ali uma volta e quase que anima um bocado, para de seguida entrar na depressão de “Steal My Body Home”, e aí o tipo arrasta-se pela música e não me parece que queira rebentar com nada. Bem vistas as coisas, e ouvindo o álbum com ouvido adulto (adolescência, gostei de te ver, mas deixa-te lá estar onde estás), a qualidade das letras e a forma como os sons estão conjugados é algo de sensacional e acabamos por perceber que este álbum é intemporal e por mim, apesar de tresandar a anos 90, as músicas cheiram a novo.
O fim de Mellow Gold é algo de transcendente, e sim, estou a referir-me às duas últimas músicas. Ouvindo “Mutherfucker” quase que consigo imaginar a minha cara a ouvir este álbum pela primeira vez e com o queixo caído. É de facto a mais gutural e estranha, mas digere-se. A última faz-me lembrar uma despedida, apesar de, no mesmo ano lançar One Foot in the Grave, é com Odelay em 1996 que ele quebra a tristeza desta última música e volta aos nossos/meus ouvidos.
E claro que, qual álbum noventino, Mellow Gold termina com uma música escondida. Uma pequena loucura de guitarras que faz transparecer uma enorme necessidade de dedilhar as cordas e apertar os dentes. Pelo menos é assim que eu o imagino. O homem é pequeno, mas a sua genialidade não tem tamanho.