Quando, há dois anos, ouvimos As Plantas Que Curam, o disco de estreia dos Boogarins, os nossos braços e os nossos corações abriram-se irremediavelmente a estes brasileiros de Goiânia. Nesse álbum, o rock psicadélico vindo de onde menos se esperava cruzava-se com a doçura que só o Brasil nos sabe trazer. Essa relação só se fortaleceu quando os pudemos conhecer, os pudemos entrevistar, os pudemos ver ao vivo nos palcos portugueses.
Esse primeiro disco foi o trampolim para que a música deixasse de ser para estes rapazes apenas um sonho e uma paixão, e levou-os a correr mundo em palcos, sobretudo pequenos mas também grandes, espalhando a sua mensagem. A expectativa era, por isso, grande, em relação a este segundo disco. Conseguiriam continuar a encantar-nos?
A resposta é um contundente sim, conseguindo mesmo superar a beleza do que já haviam feito.
Manual, cujo título completo é Manual, ou guia livre de dissolução dos sonhos mantém, naturalmente, a matriz que vinha de trás. As principais diferenças face à estreia são fáceis de identificar e tornam-se evidentes com audições repetidas. Apesar da electricidade, As Plantas Que Curam estava embebido numa candura bucólica, nalguma boa ingenuidade, numa tentativa inocente de buscar algo, e boa parte da sua magia estava aí. Com Manual, estamos a ver o que pode fazer por uma banda um ano na estrada. Um salto enorme de maturidade, de arrojo, de confiança. Uma banda que, agora sim, encontrou a sua voz e confia nela. Um conjunto que, dentro do seu mapa-mundo, encontra novos caminhos para rasgar.
O grande trunfo dos Boogarins é misturar a guitarra mágica e exploratória de Benke Ferraz com o groove da secção rítmica e a doçura da voz do vocalista Dinho (um dos tipos mais simpáticos e humildes do rock actual, já agora). E em Manual essa síntese é cozinhada de forma a apurar a receita, que nos é servida em doses generosas e assertivas.
Os 10 temas deste novo fresquíssimo disco ouvem-se como um todo, sem grandes quebras de qualidade, abrindo aqui e ali janelas cósmicas onde antes apenas víamos sólidas paredes.
O disco abre com uma pequena vinheta, “Truques”, uma réstia de jam com uma guitarra quase bossa lá atrás e a electricidade, discreta por cima, abrindo caminho à “Avalanche”, um dos primeiros temas a ser conhecido deste novo trabalho. É uma das grandes malhas de Manual, com várias fases e camadas de construção, que provavelmente condensa melhor o que são os Boogarins em 2015. É também o exemplo do salto de produção sonora, com uma maior limpidez face a As Plantas Que Curam.
“Tempo” reduz o ritmo e dá destaque à voz de Dinho, num tema subtil e hipnótico que vai crescendo com uma energia contida que se liberta no final.
“6000 Dias” é outros dos grandes singles do disco. Uma boa malha pop que, a meio, descola, nas asas da guitarra espacial de Benke. As lições aprendidas com grandes contemporâneos como os Temples ou os Tame Impala foram bem apreendidas. Um solo daqueles que apetece engarrafar e trazer sempre connosco, quando precisamos de uma dose redentora de rock exploratório.
Segue-se “Mário de Andrade/Selvagem”, que permite à secção rítmica trazer um swing quase Stone Roses na sua face mais pop, até o tema descambar (no bom sentido), numa música dentro da música.
“Falsa Folha de Rosto” começa num compasso quase jazz, abrindo espaço à incontornável electricidade mas que regressa depois ao negrume, no tema que é provavelmente o mais exploratório de todo o disco.
De seguida recebemos de braços abertos “Benzin”, que já conhecíamos de a ouvir ao vivo. Dinho canta “não há nada como o sol daqui, mesmo sem mar”, e todo o tema é Verão, amizade, juventude. Um tema quente, swingante, mas leve como uma generosa brisa. Não seria preciso um génio para intuir que esta música vem do mesmo país que inventou a bossa nova.
“San Lorenzo” é uma calma e bonita vinheta instrumental, que abre caminho para “Cuerdo”, mais um tema pausado, negro e tenso, mostrando que no mundo dos Boogarins há muita luz, mas também há treva.
Manual encerra com “Auchma”, um regresso ao velho rock com um riff de arranque com toques orientais, que ainda passa por um belo coro de harmonias vocais até Benke Ferraz conduzir o tema até à sua conclusão, assente em mais uma das suas fantásticas divagações eléctricas e psicadélicas.
Este disco é uma mesa farta, com pratos variados mas sempre com a mão inegável do seu autor. É, ainda, um álbum que promete enormes possibilidades de crescimento em palco, algo que podemos conferir já sábado e domingo, 14 e 15 de Novembro, respectivamente no Musicbox e no portuense Maus Hábitos. Os Boogarins conseguiram subir do nível já muito alto do primeiro disco.
Vamos seguir nesta viagem?