A figura feminina mais mágica, complicada e curiosa deste lado da floresta do freak folk abandonou o esconderijo. Abandonou-o com a missão de nos fazer apaixonar por ela novamente – como já havia feito uma, duas, três vezes anteriormente.
Joanna Newsom apanha-nos de surpresa com cada álbum que lança, deixando-nos sempre surpreendidos com uma nova faceta, uma nova máscara, um novo leque da sua complexa personagem. Com a estreia já distante, The Milk-Eyed Mender, de 2004, brotou do solo com a graça de um rebento: uma criança de olhos arregalados, agarrada à harpa, berrando numa voz infantil as maravilhas deste mundo novo que descobria com as mãos cheias de terra. Apenas dois anos mais tarde, com Ys, revelou-se uma velha anciã de uma terra perdida no tempo que reúne os filhos e netos à lareira, ainda com a harpa na mão (mas desta vez auxiliada pelo melindroso arranjo orquestral de Van Dyke Parks) para lhes cantar fábulas fantásticas de cometas, estrelas, macacos e ursos. E em 2010, com Have One on Me, reinventou-se na forma de uma música tão ambiciosa que só podia ter existido noutra época e noutros mundos, se é que podia ter existido sequer: uma força da natureza, lançando um disco triplo, com a duração de duas horas e recheado de temas complexos, que misturavam folk, jazz, música barroca e blues, tudo na mesma confusa mas saborosa iguaria. Um prato que demorou a digerir, tanto que nos deu cinco anos para o fazer.
E agora, regressou, com Divers – um disco que em nada se parece assemelhar ao anterior: mais compacto, com onze temas cujo nenhum passa muito mais dos sete minutos e que se cinge a menos de uma hora. Pode parecer uma mera sobremesa, mas a complexidade de Divers, mesmo camuflada, existe e talvez mais delicada, melindrosa e real que nunca.
Apesar da considerável “simplificação” em relação ao trabalho anterior, não se pode cair no erro e interpretar Divers como um disco fácil, disco de meter no carro ou na aparelhagem da sala e ouvir como quem toma um café distraído. Como todos os discos de Joanna, é um disco que prima pela complicação; não se deixa conquistar com a facilidade de tantos outros. É a voz – aquela voz, sobre a qual tanto já se escreveu, se disse, se comentou –, voz de bruxa, de criança, de timbre desconfortável e irrequieto, são as letras, que, embora mais acessíveis, continuam enterradas em tantas referências, significados e esoterismo que nos cansam os braços de tanto escavarmos, são as melodias, – que, além do habitual piano e harpa, incluem dezenas de teclados, sintetizadores, uma orquestração meticulosa e até mesmo guitarras e baterias – embora mais curtas, continuam a demorar-se nos nossos ouvidos antes de mergulharem com certezas.
A opacidade das letras de Newsom, que a cada disco soam mais refinadas e cheias, é óbvia no single “Sapokanikan” – uma história sobre a queda inevitável no esquecimento, com referências a figuras de poder nova-iorquinas remotas, técnicas de retrato, poemas dos quais ninguém se dá ao trabalho de recordar. É, sem dúvida, um dos pontos altos do disco; mais que uma música, é uma maré-viva de sentimentos e frustrações, oscilando entre a doce alegria e a raiva furiosa, que nos deixa com um nó na garganta à espera do que virá no próximo verso, e que nos faz sentir no peito que sabemos perfeitamente do que Newsom fala, mesmo quando não compreendemos nada do que ela diz.
Outro pico é o tema “Leaving the City”. Como uma verdadeira tempestade, a harpa gentil pinta um céu branco e calmo com os primeiros acordes, sonolentos e suaves; e de repente, chegam os trovões, os relâmpagos, a chuva, o vento, um refrão que explode com a violência das nuvens carregadas de preto, e Newsom surpreende-nos mais uma vez dominando um território que nunca adivinharíamos o dela – e enquadra-se perfeitamente no balançar certeiro das guitarras e das baterias vigorosas.
Desta forma continua Newsom a desfazer-nos tudo em que ousamos limitá-la; regressa forte e implacável, conquistando novo terreno com a certeza de um furacão e a graça de um anjo, apaixonando-nos pela sua voz improvável, a sua cabeça cheia de sonhos e a sua música complicada. E arranja sempre novas maneiras de nos deixar cheios de arrepios na espinha, com temas como “Waltz of the 101st Lightborne”, uma valsa carregada de uma melancolia simultaneamente risonha e lacrimejante, que nos parte o coração como apenas ela o sabe fazer; ou “You Will Not Take My Heart Alive”, uma melodia a pingar crueza e quase negrume, um ambiente de neblina desenhado pela harpa que soa de longe, enquanto a frase-título se repete até se transformar de pedido a ordem entregue com um sorriso.
Depois de criança, depois de contadora de fábulas fantásticas, depois de música com uma ambição maior do que ela própria, Newsom surge-nos, com Divers, completamente nua, despida de qualquer personagem ou mote que a cubra. Surge-nos humana, mulher, frágil. Em onze temas, reúne uma ode à experiência aterradora e maravilhosa que é estar vivo ou viva, fala de amor, de medo, de perda, da morte e da existência – “tell me, why is the pain of birth / lighter borne than the pain of death? / I ain’t saying that I loved you first, / but I loved you best” chirleia, na faixa-título, com a sabedoria de quem já viveu mais do que todos nós e com a fragilidade de quem nada sabe ainda. É uma reflexão sobre ser humano que todos nós – incluindo a própria, talvez – apenas podemos sonhar compreender na sua totalidade. Um verdadeiro evento, como já nos tem habituado.
Numa entrevista recente, Newsom disse, talvez em tom de brincadeira, talvez em tom de orgulho, ou talvez até tom de lamento: “as minhas músicas têm sempre camadas, camadas, camadas. Só sei escrever músicas complicadas.” E apenas podemos responder; descansa. A vida é complicada e quem a quer pintar num quadro, escrever num livro, ou musicá-la com os dedos assentes nas teclas ou nas cordas, apenas assim a pode representar. Não nos importamos com as inúmeras complicações que surgem com um novo disco da Joanna Newsom – e as camadas, essas, vamos desembrulhando uma a uma, levando o tempo que levar, para podermos finalmente compreender o quão bonito é estar vivo e ouvir discos sobre o fazer. E pelo caminho, acabamos por nos apaixonar novamente – sem sequer reparar.