Autoamerican é, garantidamente, o disco que mais vezes ouvi em toda a minha vida. Não me refiro apenas aos discos dos Blondie, note-se. Esta afirmação abranje a totalidade dos muitos e muitos e muitos discos que já me passaram pelos ouvidos. Foi, como é fácil perceber, amor à primeira audição, paixão maior e mais intensa do que as que também tive com qualquer outro dos discos anteriores da banda. Durante meses a fio, Autoamerican era ouvido diariamente, e em repetições tão contínuas, que lá por casa os adultos começavam a dizer mal das suas vidas. O disco, na verdade, soava de forma tão diferente (embora igualmente tão cheio de particularidades facilmente identificáveis com o som dos Blondie) que essa inesperada novidade tomou conta de mim. Autoamerican foi uma obsessão! Talvez ainda hoje viva um pouco nesse estado, ao ponto de acreditar piamente que qualquer dia terei a suprema alegria de assistir a uma Deluxe Edition (tão na moda) do disco que mais amei em toda a minha vida. Já passaram mais de 30 anos desde que saiu, por isso pode ser que aos 35 possa acontecer. Há que ter esperança…
Apenas um ano depois de Eat To The Beat, Debbie Harry, Chris Stein, Clem Burke, Jimmy Destri, Nigel Harrison e o produtor Mike Chapman voltavam a entrar em estúdio. Frank Infante, o segundo guitarrista da banda, apenas apareceria para gravar quando fosse necessário, o que não era bom sinal, embora a história recente do grupo deixasse adivinhar coisas deste género. No entanto, e um pouco ao contrario do que o produtor esperava, as gravações decorreram a bom ritmo e sem sobressaltos de maior. A banda surgiu com bastantes ideias e com vontade de trabalhar. Stein trouxe um esboço de rap (que seria, depois de acabado, o extraordinário “Rapture”, primeira canção desse estilo alguma vez feita, tocada e gravada por uma banda de pele branca); Debbie queria regravar uma canção dos The Paragons, de 1967, que resultaria no mega-sucesso “The Tide Is High”, misto de reggae e rocksteady. Mas as novidades não ficavam por aqui. A banda trouxe para estúdio uma orquestra de cerca de 40 elementos para gravar uma faixa instrumental (se não contarmos com as palavras finais na voz de Debbie), idealizada por Chris Stein, que acabou por ser escolhida para abrir o lado A do álbum. Chamou-se “Europa” e arrepiava ouvi-la, como ainda hoje me arrepia. Parecia. quando a ouvi pela primeira vez, um pedaço de banda sonora de um qualquer filme de ficção científica! Blondie on space! Uau! Que Blondie era este? Que transformação era esta que se dava em Autoamerican? Para além de tudo isto, o disco trazia ainda dois belíssimos momentos jazzísticos, intitulados “Here’s Looking At You” e “Faces”, uma torch song maravilhosa. Talvez tenha sido com estas canções que Debbie Harry se apercebeu que a sua voz estava apta para outros territórios sonoros, o que mais tarde viria a confirmar-se, por exemplo, com as suas participações nos discos dos The Jazz Passengers. Tanto para digerir, meu Deus! Claro que o pop-rock também estava presente em canções como “T-Birds” e “Walk Like Me”, mas isso parecia ser coisa residual, tal a proliferação de novos sons e estilos. “Do The Dark”, por exemplo, abria o lado B de Autoamerican e o meu quarto enchia-se de sons hipnóticos, lembrando territórios distantes, e eu ficava preso à canção, e cantava em repeat os versos finais “Walk on glass, walk on fire” como se nada mais no mundo importasse. “Live It Up”, impunha-se como uma pequena pérola em jeito disco-pop, e pouco depois chegava “Angels On The Balcony”. Passados aqueles estranhos e assustadores 20 segundos iniciais, a canção iluminava-se ao ponto de ser, ainda hoje, uma das minhas canções preferidas da banda. Como se tudo isso não bastasse, “Go Through It” era igualmente uma faixa vinda de um outro qualquer universo desconhecido para os ouvintes dos Blondie, e o álbum terminava, imagine-se o espanto, com “Follow Me”, canção feita por Alan Jay Lerner e Frederick Loewe para o musical Camelot, do início dos anos 60. Uma última referência, antes da conclusão, para as belíssimas capa e contracapa do disco, trabalho feito pelo pintor Martin Hoffman, infelizmente falecido em fevereiro deste ano.
Enfim, na minha opinião, Autoamerican é o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Blondie! Todas as alterações e mudanças de rumo trazidas pelo quinto álbum da carreira da banda mostravam à evidência a vontade de mudar de pele. Estávamos em 1980, e a década que chegava iria revolucionar o mundo da música com o aparecimento da MTV. Esse facto, por muito estranho que possa parecer, não projetou a banda para outros patamares, e talvez tenha sido até uma das razões para o início de um certo desaparecimento dos Blondie nos meios de comunicação. Algumas tentativas de carreiras a solo um ano depois do lançamento de Autoamerican (refiro-me a KooKoo e a Heart On A Wall, de Debbie Harry e Jimmy Destri, respetivamente) foram outros fatores que fizeram com que a banda fosse, gradualmente, “deixando de existir”… The Hunter, sexto e último disco da primeira fase dos Blondie, encarregou-se de tornar verdadeiro esse anunciado desaparecimento. Mas isso é assunto para o próximo post deste Especial Blondie.
Conheço apenas uma música que tocou muito por aqui.