Deuses.
Hendrix nunca o fez, tão pouco Coltrane o fez, Paige também não. Cobain não teve tempo e Springsteen nem gosta que lhe chamem Patrão. Kanye West precisou de seis discos para confirmar o que já muitos suspeitam – acha-se um Deus. E se a imodéstia não o invalidar tem, mesmo, razão. Se a imodéstia o invalidar, aproveitem e risquem Miles Davis e Bob Dylan da lista. Esses, se não o disseram foi por decoro.
Por estes dias (anos) sobram discos de ’15 minutos’, geniais durante meia dúzia de meses, embrulhados numa manta de hype que todos eleva a Beatles e que, logo depois, os condena ao esquecimento dos Animals. É que os próximos XX estão a chegar e é preciso ter atenção aos MGMT da temporada outono/inverno de 2013.
Meros mortais. Seres menores, condenados a viver num Mundo em que a física determina as regras, onde se nasce e se morre consoante as aptidões, mais ou menos, naturais e onde só os mais aptos sobrevivem. Naturalmente, tanto os XX com os MGMT serão esquecidos e guardados nos arquivos da história da música, ali ao lado dos Counting Crows ou dos Limp Bizkit. Kanye move-se numa dimensão à parte.
Depois de anos a trabalhar para fortunas alheias – não esquecer o toque dado em Blueprint, o melhor disco de Jay Z – decidiu mudar de campo. Em 2004 lançou The College Dropout e abriu a colecção de prémios – uma lista demasiado longa para incluir aqui. Um ano depois chegava Late Registration (Gold Digger, Diamonds from Sierra Leone), a exibir o rap com ‘assinatura’, um carimbo que só os grandes conseguem. Se o objectivo fosse entrar para a realeza do hip hop, ao segundo disco – até hoje os mais consensuais entre os críticos – Kanye tinha reservado o seu lugar. Seguiu-se Graduation (Stronger, Can’t Tell me Nothing) e o assumir da missão: queria ganhar o dele, era a sua vez de brilhar e a nós, meros mortais, restava-nos lançar os braços ao ar (Good Life). Com o Hip Hop definitivamente conquistado faltava o Mundo.
Seguiu-se 808 & Heartbreak, considerado “brilhante” e à “frente do seu tempo” pela Rolling Stone, ouvido por mim como um acto falhado ao género do dia em que o Lou Reed e os Metallica se decidiram juntar. Como fã, esqueço esse e dou graças aos deuses – ao Coltrane, por exemplo – pela memória selectiva. Afinal, mesmo as divindades são falíveis. O Stevie Wonder não fez o “I Just Called?” E o Robert Plant não andou a perder tempo a gravar discos com uma tal Alisson Krauss – não perguntem “quem” que vos fica mal; é prima da Taylor Swift, a tal que viveu o momento alto da carreira ao ser interrompida pelo Kanye West quando recebia um prémio.
Mas se ninguém previu a invasão ao palco dos VMA’s, muito menos alguém previu o que Kanye preparava. My Beautiful Dark Twisted Fantasy, redefiniu o que é permitido a um artista de Hip Hop e com “All of the Lights”, “Power” e “Runaway” o senhor West tornou evidente que já se movia num degrau acima do da realeza do seu género musical de origem. Se são raros os músicos que arriscam discos megalómanos, mais raros são os que o conseguem com êxito. Na sua fantasia, por mais negra e retorcida que seja, Kanye provou que merece tudo aquilo a que diz ter direito.
Agora voltou a baralhar o jogo. Já fez Hip Hop gourmet, já falhou com estrondo, já editou um disco perfeito e agora lançou um desafio aos mortais. Em Yeezus, a pergunta é simples: “Acompanham?” Se os segundos iniciais de “On Sight”, industriais e a apontar às pistas de dança mais aceleradas, fazem suspeitar que não estamos a entrar num disco normal, “I’m in It” confirma o peso de Yeezus, enquanto “Hold my Liquor” e “Guilt Trip” mostram que os Deuses também aprendem – estão dominados os efeitos que condenaram 808 & Heartbreak ao esquecimento. Logo depois, a declaração – de batida forte, grave como a declaração, “I Am a God”.
Quando lhe perguntaram como era tentar compor uma música depois de ter feito a “Eleanor Rigby”, McCartney respondeu que o fazia “sem stress”, com a consciência que nunca conseguiria nada tão perfeito, mas também que já não tinha provas a prestar. Yeezus – qualquer semelhança entre a sonoridade do título e a pronúncia americana de ‘Jesus’ não é, arrisco, coincidência – nem é o melhor disco de Kanye West. É só mais um grande, grande, disco. Agora, nós mortais, entretemo-nos a cataloga-lo. Kanye, como os deuses, já seguiu caminho. Alguém acompanha?
PS: Este artigo faz parte do site abica.
Um gajo talento como há poucos/um atrasado mental como também há poucos.