Não é necessário qualquer cuidado especial com este Cuidado Madame. Arto Lindsay regressa em boa forma. Atlético e musculado quanto baste, mas também capaz de se espreguiçar voluptuosamente.
Eram já muitos os anos sem notícias frescas de um novo trabalho de Arto Lindsay. À cautela, para que não se pensasse que o músico pudesse estar missing in action (nunca haveria esse perigo, pelo menos da minha parte) Arto Lindsay ia fazendo uma ou outra digressão, passando mesmo por Portugal há não muito tempo, facto comprovado pelo próprio Altamont, mas também tocando em projetos de alguns novos nomes da MPB carioca. E eu, com bastante assiduidade, ia ouvindo, à falta de temas novos, algumas das suas maiores pérolas, sobretudo O Corpo Sutil (1996), Mundo Civilizado (1996) e Salt (2004), mantendo-me antenado com os sotaques luso-americanos do pequeno génio da melodia e da distorção.
Até que, na entrada do segundo trimestre de 2017, Arto Lindsay resolve chamar a si os holofotes e lança Cuidado Madame, roubando o título à longa metragem que Júlio Bressane, mítico realizador do cinema brasileiro, havia feito no início da década de setenta. A propósito, e sem querer desviar-me muito do que venho aqui dizer, nunca me saiu da cabeça a cena em que uma das atrizes do filme (Maria Gladys) afirma “Eu vim de um lugar, madame, onde gente morre de fome”, enquanto esfaqueia, em tronco nu, a dita senhora. Épico momento! Mas o que importa agora, mais do que meras recordações cinéfilas, é o novíssimo álbum do músico nascido em Richmond, mas que tem o Brasil tatuado no coração. E isso, como não poderia deixar de ser, nota-se uma vez mais.
O disco terá começado a ser feito tendo como base os atabaques e outros batuques e ritmos do candomblé. Depois, por cima dessas inquietações rítmicas, Arto Lindsay lançou melodias, ambientes, palavras a seu gosto. Dito assim, de forma simplista, Cuidado Madame apresenta-se como uma construção equilibrada (há beleza etérea, há eletrónica pululante ma non troppo, há sobretudo belas canções, embora demorem um pouco a revelar as suas particulares formosuras), mostrando delicadas e preciosas texturas, misturando sempre as linguagens, mixando português e inglês.
A eventual sugestão violenta do título do álbum (o referido filme mostra a revolta de várias empregadas domésticas que vão assassinando as suas patroas / madames, vingando as opressões sobre elas impostas) não se concretiza, embora alguns temas como “Deck”, “Arto vs Arto” e “Unpair” possam, pelas dissonâncias que apresentam, ser pontes de aproximação com a estouvada anarquia da obra de Bressane. Quanto aos outros temas, os destaque terão de recair sobre “Pele de Perto” e “Seu Pai”. Na primeira, o piano introduz, como se de um início de história se tratasse, os versos “É noite lá no Agreste / Aonde o seu sotaque macio cai como a chuva”, fazendo dela a mais prazerosa e preguiçosa canção de todo o álbum. Já em “Seu Pai”, a beleza, sendo idêntica, é mais ritmada e assertiva (“O dia é alto e bate palma / Cai a noite e esconde a voz”). Bonito. Bonitas, as duas.
Feitas as contas, Arto Lindsay regressa em boa forma e Cuidado Madame tem encantos e mistérios suficientes para se manterem colados aos meus ouvidos por muito e bom tempo. É quase sempre assim com o ex-integrante dos DNA, The Lounge Lizards e dos Ambitious Lovers. Cuidado Madame tem boas ondas, boas levadas (“Tangles” poderá ser o melhor exemplo do que afirmo), tem intérpretes superlativos (Lucas Santtana e Dadi bastam para impor respeito), tem a qualidade que se espera de um álbum de Arto Lindsay. A produção parece-me límpida e irrepreensível. Um belo disco, portanto. Mais um que dentro em breve rumará à minha estante para se colocar ao lado das obras-primas que comecei por referir no início das linhas que aqui terminam.