Morreu este domingo, em Lisboa, o grande herói punk português. João Ribas, actual vocalista e guitarrista dos Tara Perdida, esteve activo na cena musical portuguesa desde o início dos anos 80. Com os Censurados, banda de culto do início dos anos 90, marcou o som e a imagem de uma geração, na qual se inclui o autor destas linhas. A vida de punk vinha de trás, dos Ku de Judas, de Alvalade. Este bairro lisboeta era, desde o início dos anos 80, um caldeirão de criatividade cultural, fruto do elevado número de adolescentes e do nível de vida desenvolvido, que permitia aos residentes ter acesso a coisas que outras partes da cidade não tinham: nomeadamente discos editados no estrangeiro. Foi nos cafés e nas ruas de Alvalade que Ribas convivia com outros putos, e dessa mistura – que passava pelo obrigatório Bairro Alto e pelo Rock Rendez Vous – andava gente que daria, mais tarde, origem a bandas tão diferentes como os Afonsinhos do Condado, os Censurados ou os Peste & Sida.
Com uma dieta musical de Ramones, Sex Pistols e Motorhead, desde cedo Ribas decidiu o seu destino. O seu quarto, aliás, é um lugar mítico de criação, empenho, suor e barulho, tendo esses tempos ficado imortalizados em filme e fotografias. Entre 1982/83 até 1987/88, os Ku de Judas foram-se consolidando como a grande banda punk underground, juntamente com uns Peste & Sida à beira do sucesso comercial e mediático e que até foram canibalizando a banda de Ribas (era frequente as bandas perderem membros para outras bandas, mesmo que amigas e do mesmo circuito). Eram os tempos dos concertos no RRV, no bar da sede do PSR, em qualquer escola secundária que os aceitasse. Por volta de 1988, as coisas não estavam a ir a lado nenhum, e Ribas, que tinha deixado de estudar aos 16 anos, quando comprou uma guitarra eléctrica, decide ir uns meses para a Alemanha. “Morava na rua das putas, que eram todas minhas amigas. Quando saía elas diziam ‘olha, lá vai o punk!’. Grandes tempos. Em sete meses trabalhei quatro horas. E não passei fome!”, contou ele a Augusto Ferreira e Renato Conteiro, autores de “Censurados até morrer”.
Regressado da Alemanha, os companheiros de banda haviam debandado. Era o sinal para começar à procura de um novo projecto. Viria a ser os Censurados, uma das bandas mais marcantes dos anos 90. Foi em 1989 que estabilizou a formação clássica dos Censurados, com Ribas na voz e guitarra ritmo, Samuel Palitos (hoje em dia n’A Naifa) na bateria, Fred no baixo e Orlando Cohen (vindo dos Peste & Sida) na guitarra solo. A juntar ao culto que os Ku de Judas já traziam, a nova banda tinha finalmente um som coeso e um projecto comum, mesmo que fosse difícil a sobrevivência em tempos de poucos sítios para dar concertos em condições e falta de aceitação mais mainstream de bandas novas. Com Censurados, o disco de estreia de 1990, fica definida a cartilha ideológica da banda. Gravado em seis dias e editado no selo El Tatu, editora dos Xutos & Pontapés (banda que sempre apoiou os Censurados em inúmeros aspectos), traz tudo o que interessava. Música rápida, letras directas de crítica social, melodias simples e catchy, agressividade q.b. Foram os tempos áureos de Ribas e da sua banda, com o disco a trazer hinos como “Animais”, “Angústia” ou “Censurados”. Confusão, o segundo disco, sai menos de um ano depois, de novo na El Tatu. Um pouco mais refinado tecnicamente, mas mantendo toda a alma, trazendo aquilo que sempre caracterizara Ribas: a luta e o bom humor. Temas como o single “Coxa”, “Kaga na cultura” ou “Loucos por sexo” são alguns dos destaques de mais um belo disco.
Com algumas bandas nacionais e até os Censurados a ter algum sucesso, as editoras começaram a acordar para uma segunda vaga de rock nacional e, na onda dos Peste & Sida, a Emi contrata os Censurados. Em 1993 sai Sopa, o terceiro e derradeiro disco dos Censurados, com produção de Kalu, dos Xutos. Era a aposta da banda e dos seus membros, um tudo ou nada, a vida no limite entre o que era a integridade artística punk e a vontade de finalmente viver da música. O disco acaba por ser algo desigual, e sofrer com um som mais limpo do que o habitual nos Censurados (semelhante, aliás, ao que aconteceu a Eles Andam Aí, dos Peste, que sofre do mesmo mal). Para a história fica a gravação do vídeo do single “Sopa”, em pleno bairro de Alvalade, um dia de glória para os filhos da terra e os seus amigos. Sem o sucesso a bater à porta, a banda começa a desintegrar-se. Orlando Cohen, por exemplo, emigra para ganhar a vida e, depois de alguma indefinição, é o fim dos Censurados. O último concerto, em 1994, dá-se no âmbito do tributo a Zeca Afonso, Filhos da Madrugada. No antigo Estádio de Alvalade, a banda apresenta o tema “O que faz falta”. Não voltam a juntar-se até 1999, quando não puderam recusar a participação num disco de tributo aos Xutos, no qual interpretaram “Enquanto a noite cai”.
Em 1995, Ribas avança para o que viriam a ser os Tara Perdida. O primeiro disco, homónimo, sai em 1996, e é marcado por um som mais pesado que o dos Censurados, em momentos mais próximo do trash do que do punk. Foi nessa altura, num dos primeiros concertos da banda, que tive o privilégio de os ver ao vivo. Foi no mítico Johnny Guitar, que acabou por fechar pouco tempo depois. Era, de certa forma, o fim de uma época. Lançariam mais cinco discos, vindo a ganhar popularidade e até vendas sobretudo a partir do terceiro disco, É Assim, de 2002. A formação foi-se alterando (uma constante na vida de Ribas) mas o som foi ganhando nitidez. Nos últimos 10 anos, o punk roufenho de outrora deu lugar a um som punk-pop típico de bandas como os Green Day,o que valeu à banda algumas críticas mas também mais popularidade. Curiosamente, e apesar do inegável estatuto de culto dos Censurados, Ribas nunca teve tanto sucesso como com os Tara Perdida: concertos regulares, fãs apaixonados, vendas consistentes. Editaram em 2013 Dono do Mundo e preparavam-se para voltar aos palcos com um concerto no Paradise Garage. Os palcos, aliás, eram o habitat natural de João Ribas. Não é difícil imaginar o concerto de despedida dos Censurados, em Alvalade, em 1994, ou a chegada dos Tara Perdida ao Coliseu de Lisboa, em nome próprio, como momentos muito altos de uma vida dedicada à música e à ética do punk e do rock. Mais, nos últimos anos começou a ter fãs que nunca tinham ouvido Censurados, e iam aos concertos pelas músicas dos Tara. Isso deve ter trazido felicidade, a um tipo que nunca quis viver no passado.
Era uma figura de Lisboa, e era praticamente impossível não o encontrar pelo Bairro Alto, de cerveja na mão. Os músicos que o conhecem falam de um gajo a sério, sempre disposto a tocar com a malta mais nova, a ajudar, a viver a música tanto no palco como num banco de jardim, como tudo começou há 30 anos atrás.
Pessoalmente, partiu hoje, do nada, um herói pessoal. Ainda tenho a minha t-shirt dos Censurados, os meus discos de vinil, livros e cd, também dos Tara, de quem aprendi a gostar. Como disse um amigo altamontiano, falando dos Censurados, “já não se faz música assim, com esta rude pureza”. É uma boa discrição.
Descansa em paz, grande Ribas. Quem é do rock não te esquecerá.
(Foto de capa: Mário Romano)