Father John Misty armadilhou Pure Comedy de desconforto, garantindo que um dia estaremos moribundos. Mas tal não passa de uma nota de rodapé: o que nos amarra à infelicidade não é a mortalidade, mas sim algumas formas de entretenimento que nos distraem de sermos livres. É o derradeiro sermão que este pastor sempre quis apresentar ao seu caótico rebanho.
Joshua Tillman, 35 anos. Touro. Nascido e criado nos subúrbios de Washington D.C, num meio cristão protestante. Visto que a música laica não era bem recebida pela comunidade pentecostal, Tillman ouviu maioritariamente canções de teor cristão, sendo que o mais profano que guardava era Slow Train Coming, disco respeitante à fase religiosa de Bob Dylan. Aos 17, Tillman vai para uma faculdade cristã em Nova Iorque. Aos 21, farta-se e – sem dizer nada à família – foge para Seattle. Paga as contas a lavar pratos e a ser trolha, mas sempre focado em fazer da música a sua vida. Isto foi em 2003.
Tillman acumulou uma vida e, depois de 9 anos, oito discos e uma passagem pelos Fleet Foxes, torna-se Father John Misty. Desde então, o norte-americano criou um universo que mais não é senão a sua própria realidade. Tal como dissera ao Financial Times em Março, Joshua Tillman sente-se “mais Father John Misty do que J. Tillman”. O disco de estreia, Fear Fun (2012), apresentou os escárnios e excessos de John Misty. Três anos depois, com I Love You Honeybear (2015), Tillman ganha mediatismo ao cantar (na primeira pessoa) sobre amor, que alivia a trágica experiência humana. “My love, you’re the one/ I want to watch the ship go down with (…) Everything is doomed / And nothing will be spared /Oh, I love you honeybear”.
Sem extravasar do seu casamento com Emma, Tillman – que vivera anos sob repressão religiosa, longe da família e sozinho – começou nestes dois discos a construir os primeiros fundamentos para o caótico mundo segundo Father John Misty. Mas de forma contida.
Em Pure Comedy, Father John Misty deixa clara a sua visão do mundo, onde se enquadram os excessos de Fear Fun e o amor de I Love You, Honeybear. É um mundo menos melodioso, sem estrutura de canção, com menos guitarras e mais piano. Ao contrário dos antecessores, em Pure Comedy há alguns crescendos, motivados por um silencioso trinar dos violinos, que poucas vezes chegam a explodir. Há mais monotonia, mas também momentos memoráveis e chavões que se repetem. Há mais perguntas do que respostas.
A seriedade e a presunção que nos entretêm
“And what’s to regret / For a speck on a speck on a speck / Made more ridiculous the more serious he gets?”, In Twenty Years or So
Tillman quer deixar-nos conscientes de que a seriedade, numa vida condenada à morte e ao caos moral, torna-se ridícula por causa da presunção inerente de que o próprio assume ser vítima. Father John Misty condena, mas confessa padecer de uma presunção narcisista. Contudo, concretiza, é nessa seriedade presunçosa que vamos encontrando felicidade. Entretendo-nos.
O caos moral que o entretenimento causou
“A few things the songwriter needs / Arrows of Love, a mask of Tragedy / Another white guy in 2017 / Who takes himself so goddamn seriously. / (…) I know I’m being annoying”, Leaving L.A.
Mas ainda há mais dicotomias e contradições. Para Tillman, a humanidade foi cegada pelo entretenimento, que vai desde o fenómeno religioso até à eleição de Donald Trump, passando pela publicidade televisiva.
Ao longo de Pure Comedy, os alegados desígnios religiosos, que prometem libertar o ser humano com base em regras escritas em livros sagrados sobre “virgens celestiais, truques de magia e zombies”, são descritos como uma forma de entretenimento, cujo propósito é convencer os Homens que “um ser todo poderoso dotou com significado este espectáculo de terror”.
“Oh, their religions are the best / They worship themselves yet they’re totally obsessed / With risen zombies, celestial virgins, magic tricks, these unbelievable outfits”, Pure Comedy
A política é o bode expiatório das decisões que nos dão liberdade
Em entrevista a Zane Lowe, radialista da BBC, Father John Misty revela o centro deste disco: “Nós temos muito mais controlo do que pensamos. O nosso problema é que, ao invés de moldarmos do que tomamos rédeas, decidimos reger-nos por forças fora do nosso controlo. Não temos de viver dessa maneira”.
O sermão vai para além da religião e continua para as notícias que lemos nos jornais, os governos que elegemos, a tecnologia que decidimos consumir e, por exemplo, a publicidade que nos rodeia. “Parece que as pessoas usam a política para se desviarem das verdadeiras e mais difíceis decisões das suas vidas, como por exemplo de que maneira é que querem viver”, disse Tillman à BBC. “Eu acho que nós não sabemos o quão livres podemos ser. Todos os dias, em infinitas ocasiões e em pequenas escolhas, alguém nos domina porque assim o quisemos”, concluiu.
“The super-ego shatters with our ideologies / The obscene injunction to enjoy life / Disappears as in a dream / But there are some visionaries among us developing some products / To aid us in our struggle to survive”, Things it would have been helpful to know before the revolution
A influência religiosa
À BBC, Father John Misty revela que estes conceitos “sempre existiram” na sua cabeça, e que apenas foram refinados para este álbum, concebido num “ambiente monástico”, sem álcool ou drogas.
Pure Comedy é, afinal, tudo aquilo que Tillman sempre quis dizer e que só agora, talvez porque “já é suficientemente famoso”, tal como revela ao Expresso, teve coragem de o dizer. É um disco que extravasa a mera reprodução do lado A e B, obrigando também que o ouvinte acompanhe a audição pela folhinha das letras.
Talvez seja por isso que Josh Tillman tenha escrito um ensaio, que acompanha a edição vinil de Pure Comedy. Antes, Misty cita umas passagens do Eclesiastes, livro do Antigo Testamento sobre a futilidade das acções do homem perante a morte e Deus.
What has been is what will be,
and what has been done is what will be done,
and there is nothing new under the sun.Is there a thing of which it is said,
‘See, this is new?’
It has been already
in the ages before us.There is no remembrance of former things,
nor will there be any remembrance
of later things yet to be
among those who come after.
A solução para esta autêntica comédia? O pastor prega no final do ensaio: “O melhor que podemos fazer é continuar a olhar em frente, algo de que já provámos ser patologicamente adeptos. Não se preocupem: vamos conseguir salvar o planeta e haverá um sacrifício semelhante ao que o Homem do Céu que inventámos fez.”