Esta não é uma entrevista igual às outras.
Há uns 18 anos, conheci o Shahryar Mazgani quando calhámos na mesma turma, no curso de Direito. Juntámo-nos pelo mais prosaico dos motivos: ele era o iraniano, e eu o único tipo da universidade com cabelo comprido. Durante cinco anos, fomos juntos para a escola, encontrando na amizade e na música o escape para os dias de chumbo de uma escola que tinha a triste obsessão de ser como a Católica. Foi este rapaz estranho que me ensinou coisas importantes e que ficam para a vida: como jogar snooker como deve ser, e quem raio era esse tal de Nick Drake.
Agora que acaba de lançar “Common Ground”, gravado com Mick Harvey e John Parish, conversámos longamente. Sobre o disco, sobre o que é isto de ser músico, sobre autores e canções. “Canção” é, aliás, a palavra mais repetida por Mazgani durante esta entrevista atípica ao Altamont.
ALTAMONT (A): Tenho estado a ouvir os teus discos e este último parece-me ter um som mais espesso, mais sólido, de um tom menos frágil do que em discos anteriores. Concordas com isso, era algo de que estivesses à procura?
SHAHRYAR MAZGANI (SM): Talvez seja verdade. Talvez essa percepção se deva ao traço das pessoas com quem eu trabalhei, eventualmente uma certa segurança e uma energia na voz dos produtores e da banda, das pessoas que gravaram o disco. Eventualmente pode percepcionar-se que há uma certa solidez. No entanto, eu diria que, sendo sólido, é despojado, há uma economia de meios…
A: Há tempo para o silêncio, para respirar…
SM: Sim. Eu acho que o que me impressionou foi testemunhar uma economia lapidada, uma economia que se atinge. Na parte em que lhes pedes para a música crescer, por exemplo, podias imaginar que iam meter a bomba atómica, e eles sugerem se calhar “aqui um ferrinho” e isso é suficiente, a música chega lá assim. E tu ficas impressionado. Porque isso dá novas significâncias ao que acontece antes e depois na canção, enriquece-a. Por outro lado, essas lacunas permitem ao ouvinte projectar a sua identidade, também. Interessa-me a economia de meios na canção, o espaço e também, neste caso, são duas pessoas habituadas a trabalhar com escritores de canções, portanto o que prevalece sempre é a voz e a história e a narrativa. Talvez essa solidez venha da experiência, da segurança. Mas ao mesmo tempo creio que o disco mantém esse espaço, essa respiração.
A: Ouvindo o disco já feito, como é que ele se compara com a expectativa com que tu partiste para ele, quando o compunhas ou quando partiste para a gravação? Surpreende-te, de alguma forma?
SM: Sim, posso dizer que sim. Eu acho que tive sempre o sentido de que a canção é escrita num espaço de alguma reclusão, e assim que outras cores são introduzidas na canção a surpresa acontece. Sim, surpreende-me, a resposta é sim. Por um lado, é preciso dizer que as canções estão muito perto da semente, não houve grandes revoluções em estúdio. Por outro, essa densidade, essa solidez de que falaste, impressiona-me. Devo dizer que não ouço o disco, não costumo ouvir o disco…
A: Muitos músicos, se calhar todos, dizem isso. Porque é que isso acontece, não ouvires o teu disco?
SM: Acho que é assim porque conviveste muito tempo com aquelas canções. Tenho de dizer que estou muito orgulhoso do disco. Há um momento que é…não se sabe bem de onde as canções vêm, e no meu caso vêm com insistência, com teimosia e trabalho. Depois, a surpresa vem quando ouves, porque já deitaste fora o teu capacete de mineiro, e já não sabes bem o que minaste e o que exploraste, e depois ouves e o tipo parece saber mais do que tu. E isso surpreende-te. Normalmente este tipo que estás a ouvir parece ser melhor do que tu.
A: Se isso não acontecer, é mau sinal?
SM: Se não sentires isso alguma coisa correu mal. Eventualmente deves encarar a canção como um organismo vivo que tu almejas que tenha a capacidade de se emancipar, e se tiveres sorte, quando a reencontras ela ainda está viva e se tiveres muita sorte ela terá qualquer coisa para te ensinar. A razão pela qual o fazes…ela nasce, assenta numa experiência concreta, mas idealmente sobrevive a essa experiência, e eventualmente pode servir a outro, isso é o ideal.
A: Insisto na pergunta de antes. Consegues explicar-me porque é que os músicos não ouvem a sua própria música?
SM: Talvez seja porque a resposta está além, está para a frente. Porque com sorte tens uma nova terra prometida para onde queres caminhar.
A: O teu som em palco é mais pesado, mais enérgico, mais rock, se calhar menos folk, que é onde a tua música é mais frequentemente categorizada. Sentes a tentação de um dia, em disco, ires mais por aí? Vês-te a ir por esse caminho?
SM: Sim. Mas sim porque diria sim a tudo. De qualquer forma, eu sempre fiz os discos um bocadinho em reacção. Acho que os discos, apesar de terem um fio condutor, rompem sempre um bocadinho com o que está feito. E claro, não ponho de parte a ideia de fazer um disco de rock n’ rol. É uma ideia que me agrada. Gosto muito de rock n’ rol.
A: Quando acabas um disco, de alguma forma, a nova vida daquele disco passa por outros e não por ti…é claro que tens de pensar e trabalhar na apresentação do disco em palco, mas ele deixa de ser teu e passa a ser do mundo. De alguma forma, começas a pensar logo para onde vais a seguir?
SM: É um bocadinho isso. Sem querer ser dramático, é uma coisa que tens de deitar cá para fora. Tem de haver uma pedra qualquer no sapato, se não tiveres uma pedra no sapato não fazes canções. Se a harmonia existe, não tem de ser convertida em nada. Nesse sentido, fazer uma canção serve para isso, muitas vezes funciona como um erguer a voz aos céus. E depois de todo o processo, sentes que agora tens um novo caminho, um novo capítulo.
A: Tu tens três discos, três LP como se dizia antigamente. Ouvindo-os, a sensação que me fica é que existe uma voz coerente desde o princípio. E a sensação que me dá é que os teus discos são passos numa carreira, no sentido de passos num caminho de etapas mas que são coerentes. E quando acabo de ouvir um disco novo teu, fico com a sensação que tu vais fazer outro, vais fazer outros, vais continuar esse caminho. Sentes isso assim ou não?
SM: Pá, espero que tenhas razão. Isto prende-se com o que estávamos a falar antes. Tu ouves a canção, não sabes como ela vem ter contigo ou como tu foste ter com ela e tens sempre o enorme receio de nunca mais ser visitado. Quando acabas, ou quando a canção está presente, estás assim numa espécie de…
A: Estás num transe?…
SM: Sim, e tens até algum receio de mexer demasiado e da maneira errada, de fazer alguma coisa que a possa afugentar. No momento em que está feito as coisas podem parecer-te claras mas não sabes totalmente como foste lá ter.
A: Tu sentes aquilo que muitos outros artistas sentem, uma espécie de vazio e de cansaço uma vez terminada uma obra?
SM: Sim, posso dizer que sim.
A: E é aí que te dá o medo de que a musa possa te visitar de novo?
SM: Sim. Há esse medo. Tu dedicaste-te ao trabalho, aquilo dá-te sentido às horas, e de repente está feito, e tu ficas sem norte.
A: Mas pode dar-te temporariamente um alívio bom, no sentido em que podes ganhar algum tempo sem sentires a obrigação de produzir…
SM: Isso é verdade. E este disco foi um disco moroso, demorei algum tempo a escrevê-lo, fui tratado com muita generosidade, pelos produtores, fui muito encorajado. O estúdio é um sítio delicado, é um sítio onde tens de estar inteiro, é um sítio de desempenho, no qual que é preciso moveres-te com algum tacto. Eu fui muito bem amparado, muito bem acolhido. E essa experiência pessoal, ou emocional, permitiu-me também descansar no fim, não só pelo disco, mas também pela experiência.
A: Sentiste a pressão de ires trabalhar com nomes que admiras há muito, expondo algo tão íntimo como as tuas canções? Sentiste em algum momento algo como “eu não estou à altura”?
SM: Pá, eu sinto sempre isso (risos). Sinto sempre um síndroma de impostor, isso é uma coisa permanente, porque sabes que te estás a mover numa tradição seríssima, antiquíssima. E que estás a brincar com dinamite, sabes que não és um escolhido, sabes que não foste bafejado pela musa, e sabes perfeitamente que não és “the real thing”. Essa é a minha convicção. Portanto isso está sempre presente.
A: Mas o que passa, nos teus discos e na tua postura, é o desejo de ser autêntico; como é que isso se compatibiliza com o que acabaste de dizer?
SM: O sentimento é….tu não acordas músico, no meu caso. Eu não acordo músico, não acordo um escritor de canções. Se o dia me correr bem, se trabalhar, deito-me com o sentimento de que poderei vir a ser um escritor de canções. E é nesse sentido. Tu queres ser honesto, no sentido em que queres contar uma história que conheças.
A: Não é toda a arte assim? Para seres artista não tens de ser um bocadinho impostor? Pegas num episódio da tua vida, e se o contares directamente como foi, ninguém te vai pagar por isso, pelo que tens de te basear nesse episódio e rodeá-lo de outras coisas…
SM: Acho que são coisas diferentes. Há uma técnica, há uma forma. O Kiarostami diz bem, ele diz que “eu monto uma verdade com várias pequenas mentiras”. Mas a isso eu não chamaria impostura.
A: Estávamos a falar de impostura numa óptica mais íntima…
SM: Sim, porque é um chão enorme e sagrado, para o qual tu sentes sempre que tens os pés sujos. Isto é a minha vida. Nesse sentido, o meu trabalho e a minha vida confundem-se, a minha voz é minha e a vida é minha. O que eu almejo, o que eu quero é escrever com autoridade, e quero contar a minha versão das coisas. E tenho certamente o que é preciso para o fazer. E hoje em dia não tenho a menor dúvida. Se há meia dúzia de anos me dissessem, “eh pá, não és cantor”, se calhar acreditava. Hoje não. Hoje sei perfeitamente o que estou a fazer, sei a minha ambição – que é íntima, não estou a falar de limusines e coisas dessas – sei qual é a ambição que tenho para o meu caminho. E sinto que tudo me foi bom, tudo me trouxe aqui, mesmo o que parecia contrário contribuiu para o que sou. Portanto esse balanço é bem positivo. Isto para explicar a impostura, porque eu estou absolutamente convicto do que estou a fazer, e faço-o com toda a afronta. Canto-o e digo-o com toda a afronta. Isso é uma coisa. Outra coisa é perceberes que estás inserido numa tradição que tem gente seríssima, a fazer coisas seríssimas, com um fôlego…há uma canção que eu amo muito, que sintetiza muito bem o que estou a tentar dizer, a “Tower of song”, do Leonard Cohen, que para mim é o maior. É o maior escritor de canções. Ele diz: “I said to Hank Williams: how lonely does it get? Hank Williams hasn’t answered yet. But I hear him coughing all night long, a hundred floors above me, in the Tower of Song”. A questão é: queres-te meter nesta torre, neste território sagrado? É isso o que é. E a questão é tu pensares que podes habitar neste edifício. E é nesse sentido que falava há pouco.
A: Portanto já não estamos a falar da questão do rapaz que faz umas canções à viola, mas sim quando começar a ascender a uma determinada divisão, entras num outro campeonato, dessa tradição de que falas, onde habitam monstruosidades…
SM: Exactamente, e é com esses que tens de te medir.
A: O que é que te pode acontecer, que achas que precisas de fazer, para um dia teres a arrogância de te poderes achar igual aos melhores, se a vida te continuar a correr bem?
SM: Se o facto de a minha vida correr bem levar a isso, a minha esperança é que a minha vida corra muito mal (risos). Que jamais o diabo me diga isso. Isso para mim é a voz do diabo. É a morte do artista. Há um mestre de caligrafia japonês, que aos 80 anos diz assim: “Se Deus me desse mais 5 anos, eu tornava-me um artista”. Portanto a ideia é: se tiveres sorte, se tiveres muita sorte, e estiveres muito atento ao diabo – porque essa é a voz do diabo – se tiveres muita sorte estás sempre quase a chegar. Tirando a carga dramática e mística, mas é a Terra Prometida. Há um mestre rabino que diz “a verdade está sempre no exílio”. É isso. Não se chega. Quando chegares, quando essa voz te convencer, morreste. Acabou. Eu acho que a ambição, no sentido mais íntimo, é cumprires-te. Aí tens de ser muito ambicioso. Tens de ser o melhor que tu podes ser. Isto agora é capaz e soar pretensioso, mas é para ser claro. Os mestres hassídicos têm ditos muitos bonitos. E há um em que o mestre diz ao seu discípulo: “no além, no outro mundo, Deus não me vai perguntar porque é que não fui Moisés. Vai perguntar-me porque é que não fui tudo o que podia ser”. Aí acho que a ambição tem de ser tremenda, e os melhores são os que habitam na radicalidade, acho eu. Aqueles que procuram a terra incógnita, não cartografada. Que implica sempre negrume, penumbra. Idealmente, tens de criar novos mapas. Tentares criar novos mapas para quem te ouve. E aí tens que ser muito ambicioso, mas é uma coisa tua, íntima e inconfessável, não podes sequer dizer isso.
A: Falaste na busca, na procura. Acredito que seja difícil, para tipos muito bons, consensuais, idolatrados por toda a gente, continuarem a ter fome para criar e fazer coisas novas…
SM: Pois, mas consensual para mim é uma palavra feíssima. Se é consensual…aí eu sou marxista na versão Groucho, “eu não quero fazer parte de um clube que me deixe entrar”.
A: Nós conhecemo-nos há muitos anos, encontrámo-nos numa fase da vida especial para os dois, unimo-nos num período adverso. E uma coisa que me dá muito gozo hoje em dia é ver que tu estás a fazer discos, a ter sucesso, a viver o teu sonho. E eu sei que, durante esses tempos, a música sempre foi o teu plano B, ou o teu plano A. O plano A mas sem necessariamente a convicção segura da tua parte de que seria possível. Quando é que foi o momento em que tu disseste “é este o caminho e eu vou segui-lo”?
SM: O caminho foi um bocadinho por exclusão de partes. Porque eu nunca achei que isto fosse para mim. Não me conseguia encaixar no que estava reservado para mim e decidi ser individualista, e decidi inventar uma profissão. Não por achar que tinha vocação, mas porque no bilhete de identidade tive de inventar uma profissão e a brincar, a brincar tornou-se a minha vida.
A: Foi uma questão de, a determinado ponto, tu não teres nada a perder?
SM: Sim, pode-se dizer isso. Mas quem se aventura nesta vida acho que tem sempre esse sentimento. Ou então o contrário também é verdade e não é um paradoxo, a vida é para perder.
A: Entre as várias experiências que nós partilhámos, há coisas que me ficaram e que eu gostava de revisitar. Eu aprendi muita coisa contigo, sobretudo de música. Entre essas coisas, houve coisas absolutamente marcantes, desde o Cohen que eu achava uma seca descomunal e tu já achavas que ele era o maior, desde o Nick Drake, que ainda hoje é para mim uma coisa do outro mundo. O que eu queria saber é: uns 15 ou mais anos depois, essas tuas bases são as mesmas ou têm-se vindo a alterar com toda a música que te rodeia e que tu consomes?
SM: As bases, os pilares, são os mesmos. A tendência é estar atento ao que vai acontecendo, mas a tendência é voltar sempre aos mesmos discos, voltar a ser sempre derrotado pelos mesmos discos, e os discos vão ficando cada vez mais distantes, as derrotas cada vez maiores. Ouço poucos discos, desses discos de vida, mas volto sempre a eles. E acho que é preciso estar atento num tempo em que quase todas as semanas aparece o novo salvador do rock n’ rol. E para estar centrado é preciso voltar. Até ouvir Leonard Cohen, eu não sabia que uma canção podia ser aquilo. E acho que nestas coisas, dos pilares, as pessoas não mudam muito.
A: Tu és uma das pessoas que eu conheço que podias viver só com dez discos. E irias ouvi-los 537 vezes e não te fartavas e encontravas sempre algo para te maravilhar. Consegues analisar qual é o traço comum a esses discos da tua vida?
SM: Sendo eu um amante dos escritores de canções, acho que o que os une é cantarem-se a si mesmos. E cumprirem-se. São todos escritores de canções não-geracionais. Universais e que extravasam movimentos e de certa forma contra-corrente. De certa forma, são discos que aparecem no meio de um movimento consensual da altura, mas são discos que se calhar dizem-te muito mais sobre o que foi viver nessa época do que o disco que mais vendeu dessa época.
A: E o facto de contarem uma história…
SM: Sim, porque uma canção é um empreendimento maior. Uma canção de três minutos pode safar-te de grandes sarilhos. Entra-te imediatamente nas veias, muda-te imediatamente a química. E neste território de que estamos a falar o ouvinte está muito próximo da música.
A: Quem é que tu tens, ainda hoje, no Panteão?
SM: Pá, o Leonard Cohen está lá sempre. O Bob Dylan, Tom Waits…Nick Cave, o Neil Young, tenho muito amor pela PJ Harvey (acho que este “Let England Shake” é uma obra-prima). E a Nina Simone, também.
A: Falaste do Tom Waits. O que é que tu sentes ao ver as diferentes transformações da carreira dele? O que sentes ao ouvir o último disco dele?
SM: Gosto. Gosto. Eu fui vê-lo ao vivo há uns anos, e fiquei muito zangado. Porque o tipo tinha 60 e tal anos, e eu não tinha caparro para fazer aquilo que ele faz em palco. Ele começou o concerto de tal maneira que ele praí à quarta ou quinta música começou a ter de poupar a voz para se resguardar. Isto não é inexperiência. Ele sabe e quer dar tudo. E há momentos em que parece que ele extravasa o corpo. Parece que ele trabalhou tantas horas que as coisas começam a vir de um sítio diferente.
A: Qual foi o último disco que descobriste, recente ou não, que te tenha deixado conquistado?
SM: O da PJ Harvey, sim. Estou a gostar muito do novo do Nick Cave, “it’s a grower”. O álbum. Tinha ouvido os singles e não tinha ficado muito impressionado, mas o álbum sim, está a crescer. Vale a pena, e vale a pena ouvi-lo como um todo. É um objecto uno e é preciso ouvi-lo assim.
A: Houve uma altura em que os singles praticamente morreram, e depois com a geração iTunes voltou a haver aquela coisa do consumir uma música individualmente. Mas há artistas que, só em single, perdem o sentido…
SM: No meu caso, eu gosto de álbuns. Os álbuns que eu quero ouvir são discos que eu quero ouvir até ao fim. Não compro um disco pela faixa 6 ou coisa assim.
A: Houve algum músico, que tenha vindo contigo já desde trás, e que te tenha desiludido muito pelas escolhas que fez?
SM: Acho que não. E essa é uma pergunta pertinente, porque é também por isso que os amamos. Saber que podemos confiar neles e deixa-los entrar nas nossas vidas sem ter medo de ser traídos. Isso também é fundamental. O último álbum do Leonard Cohen é lindíssimo. E ele também já tem aquele traço de mestre, com dois rabiscos faz um grande desenho, essa extrema economia. Sentes que podes confiar neles, deixa-los entrar na tua casa. E é amor, e não estou a dizer isto com ligeireza. Amor no sentido em que mesmo quando eles falham, tentas entender onde eles queriam ir. E é engraçado ver a geração do Neil Young e do Dylan, que tiveram alturas em que estiveram completamente encostados às cordas. E continuam a fazer discos tremendos, eu adorei o último disco do Bob Dylan, por exemplo.
A: Gostaria de te perguntar uma coisa um pouco mais pessoal. O nome do teu projecto, dos teus discos, é o teu nome, é o nome da tua família. Num momento em que estás a ser falado e as coisas a correrem bem, como é que tu vês o nome da tua família ser escrito e falado, por tua causa?
SM: Isso faz sentido na medida em que, por exemplo, fico contente pela minha mãe. É interessante no bairro, e eu gosto do bairro. O rapaz que sai na revista, e ver o nome da minha família na revista. Essa é a dimensão da importância. E o senhor do restaurante, dizer “se vier aí o artista, escolha um peixe bom para ele”. De resto, é também preciso saber que o Mazgani da revista e o Mazgani da vida real são pessoas diferentes.
A: Falando disso: quem não te conhece sem ser dos palcos e dos discos, vê-te como uma pessoa melancólica e fechada, não fazendo ideia do sentido de humor e da sede de viver que tens. Isso é propositado? É importante que esse teu outro lado não passe?
SM: Não. Sabes que eu não cultivo isso. Isso vem das canções, as canções são densas, ou melancólicas, e é isso que leva as pessoas a falar em negrume, em penumbra. Mas acho que também é preciso luz, essa sede de viver, para alumiar esses terrenos. É preciso alguma saúde mental para mexeres no negrume. Acho que não há paradoxo nenhum. Não precisas de ser uma pessoa muito triste para escrever canções com negrume. Há duas dores diferentes. Uma é de evitar, que é a dor estúpida de meteres o pé debaixo do frigorífico ou dares cabeçadas na parede. Essa dor esquece. Depois há uma dor de parto, frutífera, que dá origem a alguma coisa. E esse território importa habitar. Acho que esse bom humor, essa alegria de viver são importantes para depois mexer em coisas mais pesadas. Porque senão evitas fazê-lo.
(Fotos: Hugo Amaral)