Cate Le Bon é uma artista galesa, e isso joga bastante a seu favor. Wales é terra de muita e boa gente, sobretudo no que à música diz respeito. Aprendi há já longo tempo a respeitar alguns dos seus grandes nomes, mesmo que essa grandeza não se faça, de facto, notar pelo mundo inteiro. Refiro-me, por exemplo, aos meus adorados Super Furry Animals, Gorky’s Zygotic Mynci, Gruff Rhys, Euros Childs e John Cale, apenas para não estender muito a listagem a outros artistas. Há, aliás, entre Cate Le Bon e os primeiros quatro nomes referidos uma enorme proximidade, quase intimidade até, uma vez que foram partilhando palcos, discos e ideias ao longo dos tempos. A família galesa é forte, unida, e recomenda-se sem objeções de maior, sobretudo se a língua nativa não interferir com ouvidos demasiadamente anglo-saxonizados. No meu caso, essa estranheza fonética nada me perturba, confesso. No entanto, esse pormenor não se coloca em relação a este quarto disco de Cate Le Bon.
Com dois EPs e quatro álbuns em carteira, Cate Le Bon lançou este ano o ainda bem fresco Crab Day, com pouco mais de mês e meio de existência física. É uma criança, pelo que se vê, embora a sua progenitora se mostre cada vez mais adulta e segura do percurso que quer traçar. E aí está uma outra coisa que joga a seu favor, portanto. Mas há mais. Le Bon tem uma identidade sonora muito própria, como todos os artistas devem ter, aliás. E se isso é bem visível (ou audível, melhor dizendo) em todos os seus trabalhos, neste Crab Day a coisa não se faz por menos. As melodias ziguezagueantes, algo desajeitadas (diga-se, em abono da verdade, que nessa circunstância desarranjada reside muita da beleza dos seus predicados sonoros), e cheias de inflexões bruscas são a sua mais forte imagem de marca. Uma marca quase surrealista, se é que esta definição pode surtir no vosso espírito alguma significação substantiva, para além da que surte na minha cabeça. Outra razão que me faz gostar de Cate Le Bon e deste novíssimo Crab Day é a semelhança sentida, por vezes, com os meus também adorados Pram, sobretudo em canções como “Find Me” ou “Wonderful”, sem que, no entanto, se note a perda da tal identidade intrinsecamente excêntrica que faz parte do seu ADN musical.
Crab Day é um disco para não tocar na rádio, se é que me faço entender… São vários os temas que levariam os ouvintes de uma qualquer Comercial dos ares desta vida a mudar automaticamente de estação. Desde logo se prestaria a isso a canção homónima, que abre o disco, mas também “Love Is Not Love”, “I’m a Dirty Attic”, “Yellow Blinds, “Cream Shadows” ou “How Do You Know?”. Sobretudo pela estranheza nada cantarolante dos temas referidos, que lembram, ao mesmo tempo, os cantos e os modos longínquos de Sandy Denny em dias de inspiração menos formal e mais desalinhada, mas também os atuais cantos e modos das Stealling Sheep, embora estas se apresentem com um produto final mais certinho, mais contido, mais hipnótico e melhor embalado.
Cate Le Bon é, como se percebe, um enigma que convém tentar não descobrir a fundo. Talvez não valha mesmo a pena esmiuçar a teia de enredos que fazem dela uma artista de difícil qualificação. Basta aceitar que o seu evidente sentido experimentalista em nada colide com a sua capacidade nonsense de criar ambientes sonoros deliciosamente imprevisíveis, e entrar na sua onda. Até porque é nesse íntimo e particular recanto da sua arte que reside o seu principal fascínio. Assim, contrariando a letra que diz que Cate Le Bon terá nascido num “wrong day”, acertem os vossos dias afinando-se com este Crab Day, e verão que é bem capaz de valer a pena.