Depois do intervalo intimista de O Fim, B Fachada apanha-nos onde Criôlo nos tinha deixado: uma caldeirada de folclore português, kizomba e electrónica qual Beck comendo uma dançarina minhota numa discoteca de Luanda. Fachada já explicara antes o empreendimento que agora retoma: olhar para a diáspora portuguesa, não naquilo que levámos para o mundo, mas sim naquilo que dele trouxemos.
Acontece que nesta segunda viagem B vem mais apetrechado. Traz consigo alguém que conhece como ninguém os territórios da mestiçagem artística: o senhor Zeca Afonso. Já há uns tempos que nas suas letras Fachada vai piscando o olho aos grandes da música popular portuguesa (MPP): «Queres ficar com os meus LP do Zeca» e «Só me mostravas discos do Sérgio Godinho» são versos que falam por si. Por outro lado, Fachada vem fazendo o mesmo exercício com o seu próprio nome, não tendo qualquer pudor em cantar coisas como o «Quem quer fumar com o B Fachada?», como se ele fosse já, incontestavelmente, um ícone pop. (A Amália fazia isso mas, caramba… era a Amália!) Há nestes gestos uma vontade deliberada de se inserir na tradição da MPP e de estabelecer um diálogo imaginário – de igual para igual – com os seus protagonistas. Para quem não era sequer nascido quando foram gravadas as obras-primas Cantigas do Maio e Por Este Rio Acima, há alguma desfaçatez neste taco a taco. Mas não adianta estrebuchar: desde o seu surpreendente álbum homónimo de 2009 (o seu primeiro disco de maturidade), e dos maravilhosos discos que lhe sucederam, Fachada entrou por direito próprio na primeira divisão da MPP.
Se nos discos anteriores o bate-boca com as sombras tutelares era coisa meio discreta e pontual, ele é agora o próprio conceito unificador do novo disco: cinco originais construídos a partir de samples que convocam esta tradição (por exemplo, a «Leitaria Garrett» de Vitorino é mote para «Dá Mais Música à Bófia», assim como o «Coro da Primavera» do Zeca é o ponto de partida para «Pifarinho»), e uma cover do Zeca a encerrar o percurso: a intemporal «Já o Tempo Se Habitua».
Esta última canção provém do álbum Contos Velhos, Rumos Novos – metáfora perfeita para a reinvenção heterodoxa que Fachada faz do legado do seu mestre. Onde Zeca procurava sempre o que ele chamava de «sons puros», desdenhando a electricidade e o artifício, Fachada faz questão de usar os beatmakers mais inorgânicos e os sintetizadores mais manhosos, desafiando os sempre autocráticos limites do bom gosto (muito na esteira do tropicalismo de Caetano e Gil). Esta morte do pai é sempre um processo doloroso. Nós somos os discos que ouvimos, e logo no primeiro verso da primeira canção Fachada conta-nos que os discos do Zeca se confundem com a sua própria infância («Zecas e fraternidade a sujar-me o babete»). Matar José Afonso é matar uma parte importante de si próprio, cruel condição sem a qual nenhuma independência artística seria possível.
Não só na música Fachada se diferencia do artista que mais admira. Nas letras – e na mundivisão que as inspira – há claras diferenças. Onde o Zeca é utópico e comunitário, Fachada é desconfiado e individualista. A mordacidade que ilumina as canções pode ser semelhante mas as motivações são completamente distintas. O idealista Zeca acreditava no futuro e pôs toda a sua vida a tentar derrubar as iniquidades que o obstruíam. Fachada é mais cínico: não acredita em nada a não ser nos nossos vícios, que desmonta perspicaz como quem joga um puzzle. Deixamos aqui dois exemplos do seu implacável niilismo. Em «Um Fandango Ensaiadinho» (cuja melodia faz lembrar «Gastão Era Perfeito» do Zeca), Fachada remata: «Sozinha no desfile / Gritavam das janelas: / Nem Janeiras quanto mais Abril.» Em «Dá Mais Música à Bófia» (com um «te-te-te» à Fausto lá pelo meio), B traça um delicioso retrato de uma manifestação, onde as dinâmicas entre polícias e manifestantes são despolitizadas e reenquadradas como uma espécie de jogo erótico onde todos se divertem: «O chegadinho é tal que o povo canta todo em pé, a polícia fica louca quando a canção cabe na boca.»
Em resumo: mais um disco inventivo, ousado e inteligente que se arrisca muito, petisca muito mais: a certeza de um lugar a letras gordas na história da música popular portuguesa. Lá em cima, do alto da sua estrela d’alva, o velho Zeca sorrirá com orgulho.
bom texto. quase me convencias.