Quando nos sentirmos sem forças para enfrentar os problemas que a rotação da Terra nos coloca, nada como parar e escutar Adrianne Lenker.
Já me vou sentindo sem palavras para descrever o universo de Adrianne Lenker – aqui discorri sobre os seus anteriores trabalhos anteriores a solo, abysskiss e songs & instrumentals, bem como sobre os trabalhos dos Big Thief, uma das grandes bandas dos tempos recentes. Acho que ainda vamos precisar de alguns anos de distância para realmente entendermos a magnitude deste corpo de trabalho que Lenker vem criando, com uma destreza e rapidez assinalável.
Bright Future é mais um disco deslumbrante. Gravado em registo do it yourself, em casa, rodeada por amigos que vão contribuindo nas canções, dá ares de ser um ajuntamento à volta de uma lareira, no qual, após jantar e no meio de copos, alguém pegou numa guitarra e começou a tocar. Só que aqui esse alguém é um prodígio a tocar, a cantar, a inventar canções com espontaneidade, Lenker master of her domain.
“Real House”, canção de arranque, começa com piano e microfones a serem ligados, e arrepia à primeira aparição da voz de Lenker, “Do you remember running?”, numa só frase somos invadidos por nostalgia, saudades de infância, memórias refundidas a disparar cá dentro. Porque enquanto a cantora discorre sobre as suas lembranças de eventos específicos da sua vida, nós usamos esse espelho e vamos aos nossos, ao nosso íntimo profundo, ladeira abaixo sem travões. E aproveito esta deixa para ir a três referências que aqui quero deixar ao leitor para melhor compreender o impacto de Adrianne Lenker na minha pessoa:
1. A referida em todos as anteriores crónicas, Joni Mitchell. Sim, bem sei que é um tiro ousado, mas aqui estou para dar o corpo ao manifesto, afirmando que Lenker é a Joni dos nossos tempos.
2. Um senhor de uma voz intemporal, que lançou há 70 anos um disco estrondoso, Canções Praieiras de Dorival Caymmi. Ouvir Dorival é sentir a certeza que os humanos sempre cantaram e sempre cantarão, para melhor partilharem as suas dores e tormentas, bem como alegrias e conquistas.
3. O espelho referido acima, o ler/ouvir algo que instantaneamente nos leva para um tempo passado das nossas vidas, que me acontece sempre que entro por um livro de António Lobo Antunes.
Podia ainda dizer que o disco tem várias canções portentosas como “No Machine”, “Evol”, “Cell Phone Says”, “Ruined” podia, mas tenho a certeza que é desnecessário porque vocês vão percebê-lo sozinhos.