Portugal está demente. Enquanto as formidáveis planícies alentejanas – com as suas azinheiras, cegonhas e casas caiadas de branco – estão a ficar sem gente, as cinturas das grandes cidades vão ficando cada vez mais amontoadas, gente entristecida encafuada em caixas feias de betão. É com este cenário em pano de fundo que devemos olhar para os Uaninauei: juntamente com um núcleo duro de outras bandas eborenses, eles formam o último reduto da resistência alentejana contra a odiosa centralização.
Não é uma guerra fácil. Não há muita tradição de rock em Évora, há poucas salas para concertos e os centros de decisão da indústria estão sediados demasiado longe. Uma primeira batalha já está porém ganha: são bem conhecidos na sua cidade, enchendo por regra as salas por onde passam. Mas depois vem o eterno problema: como ultrapassar a barreira invisível da interioridade e chegar aos grandes centros urbanos? Quem conheça os Uaninauei sabe bem a resposta: lutando e suando o dobro dos outros.
Costumam ensaiar na quinta da avó de uma amiga, a Dona Vitória, que apesar de octogenária ainda amanha a terra e trata da bicharada. E é assim, no meio dos patos e dos pavões, que desde 2008 os Uaninauei vão enxertando o seu rock cosmopolita com as suas raízes alentejanas. Que poderosa metáfora de identidade é afinal o seu local de ensaios.
Em 2010, lançam o álbum de estreia Lume de Chão, muito bem recebido pela crítica. Quatro anos depois regressam agora com um novo grande disco, o tal com o nome da simpática avó que os acolheu na sua quinta. Não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio: os Uaninauei estão já noutro lugar do seu percurso criativo. As influências thrash que eram muito marcadas no primeiro disco estão agora mais diluídas. Para quem tiver alguma resistência à rudeza das guitarradas metal, esteja descansado: Dona Vitória é um álbum mais acessível. Canções como a “Nascer Crescer Morrer” (a primeira em que exploram a simplicidade pop de uma canção com apenas três acordes) só não passam mais na rádio porque o nosso meio musical é estreito e pequenino, estupidamente fechado à boa música que se vai fazendo por aí.
Mas não nos deixemos distrair pelas diferenças. Comparando os dois discos, percebemos que há um DNA Uaninauei que se mantém inalterado: uma mistura única entre riffs possantes (três guitarras, que o frontman Daniel Catarino também tem unhas para a coisa), deambulações psicadélicas, refrões fortes que ficam logo no ouvido, harmonias vocais melífluas, um flirt ocasional com os cantares alentejanos e, last but not the least, as letras inteligentes de Catarino, muito ancoradas no meio rural onde cresceu, um mundo que aos poucos vê desaparecer sob a erosão da modernidade.
Não é por acaso que há várias referências ao poder alienante da televisão (em canções como “Maria Manuela” e “Limites do Juízo”). A TV é aqui um símbolo não só do triunfo da artificialidade moderna sobre os saberes ancestrais, como também uma alegoria de passividade das pessoas face ao mundo que os rodeia. Da mesma forma, estando o seu Alentejo a despovoar-se, é natural que algumas das canções – como “Maria Manuela” e “Aldeia sem Taberna”- sejam retratos amargos de solidão.
Mas nem sempre é pessimista o tom de Catarino. Em contraste com estas personagens derrotadas, surge o protagonista de a “Virgem do Descanso”: um velho camponês que resiste às seduções do admirável mundo novo com a sua enxada em punho: “se este mundo é uma enxada, que fazer senão cavar”.
É isto que eu admiro nos Uaninauei: a sua profunda autenticidade. A banda eborense fala do mundo que conhece bem, traduzindo as suas próprias vivências em palavras e notas musicais. Não há neles aquela atitude tão portuguesa de deslumbramento com o que é lá de fora e autocomiseração com o que é nosso. Desengane-se quem pense que os Uaninauei são os Tool portugueses ou os Ornatos Violeta do Alto Alentejo. Mais do que qualquer outra coisa, os Uaninauei são eles próprios, sem prisões estéticas ou ideológicas de qualquer ordem.
Sendo originais, autênticos e inventivos, sei que um dia lhes será aberta a porta do reconhecimento público. Nesse dia, sentada num banco de madeira enquanto corta o seu feijão verde, Dona Vitória sorrirá.