Um piano à espera, abraçado por uma meia lua de holofotes e um video wall por onde chegavam imagens a preto e branco de Palma a passear num campo de trigo, sozinho, anunciavam o início do concerto.
De casaco e chapéu, aparece do lado esquerdo do palco, toma o lugar que é seu e ataca “A Viagem na Palma da Mão”. E, agarrados à hora que não passou, somos guiados por Palma na palma da sua mão, felizes por seguir caminho.
“O Meu Amor Existe” espreita com ternura depois de pendurar a farpela que lhe adornou a entrada teatral. “Pôs-me a salvo para além da loucura” canta, deixando-nos a certeza da poesia do nosso Cohen, pensei eu, confirmando aquilo que já sabia, com os sentidos temas “Terra dos Sonhos”, “Deixa-me Rir”, “Essa Miúda”, tocados com uma intensidade a que poucas vezes assisti, numa interpretação auxiliada pelas imagens em planos fechados da sua cara, das suas mãos, dos seus pés, do interior do piano que, tal coração ferido, seguia as ordens do dominador.
A cidade de Lisboa aparece embrulhada em fumo etéreo, imagens de fundo aos primeiros acordes da “Canção de Lisboa”, inspirados em Mahler, explica Palma. Ouvem-se as primeiras vozes tímidas de um público contido, talvez pela solenidade do concerto conceptual, talvez por esperar algo diferente. Jorge Palma levanta-se a cada música e faz a vénia de agradecimento por cada aplauso, o nosso Cohen penso eu outra vez.
O tema “Estrela do Mar” foi criado a partir de uma base simples de guitarra, explica, mas rapidamente o passou para o piano com arranjos impressionistas quando se impressionou com Debussy e os seus discípulos. E a força da frase “Qualquer coisa impossível fez-me acreditar”, levantou de novo as vozes mais insistentes num concerto para um público que teimava num mannequin challenge desadequado.
“À Espera do Fim” mostrou-nos Palma no seu momento mais sombrio e talvez mais clarividente, numa história cíclica “ando muito deprimido, É dificil encontrar quem o não esteja, Quando o sistema nos consome e aleija”; podia ter sido escrita ontem que a humanidade reconhece, no meio da esperança que o seu jeito desajeitado de menino nas ruas de Paris passa em imagens atrás de si, numa nostalgia perfeita.
“O Bairro do Amor” dedicou-o à Rita porque ela compreende bem e os amores são para ser celebrados. A arte, essa serve para ser dedicada quando encontra à frente o seu propósito.
“Jeremias o Fora da Lei”, que diz ser uma desgraça ao piano, foi talvez o momento mais cómico da noite, com alguns erros técnicos que passaram ao lado pela necessidade de algum relaxamento que a piada traz a quem precisa de soltar os ombros.
Os acordes imediatamente reconhecíveis de “Frágil” remetem-nos de imediato para o tempo dos bares onde o fumo nos toldava a vista e os copos de whiskey substituíam os do gin e as paixões nasciam em mesas de bar. Era o Palma boémio que conhecemos.
“Gamado a Schönberg”, admite, “Dizem Que Não sabiam Quem Era” é a balada triste da mulher incógnita que se expõe antes de “Só” num alinhamento perfeito.
Numa apresentação do hino “A Gente Vai Continuar”, Palma expressa as incoerências de um mundo de futuro incerto, até com “uns dióxidos de carbono e tal” que nos fazem duvidar mas com ele vamos continuar.
Terminam os 15 temas que compõem Só mas não se finda o concerto.
Seguem-se as lembranças da infância e o incentivo da mãe através das mãos pequenas de criança num piano que parecia tão grande e hoje é dominado com uma sonata de Beethoven, “Não sou a Maria João Pires” mas isto dá-me muito gozo, confessa, e discursa sobre as técnicas da música clássica alheias aos mais leigos, como o Pathetic de Beethoven “Isto não é patético, Pathetic é o que vai ao fundo o que despoleta sentimentos profundos” e assim foi.
Seguem-se as colaborações como a “Valsa de um Homem Carente”, texto de Carlos Tê, a versão de “Avec Le Temps” de Léo Férre que chateava os franceses pela manhã quando a tocava no metro da cidade luz “Aquilo era muito pesado para aquela hora, passava logo para o Dylan”
O que aconteceu mais tarde, ao cantar no encore “Forever Young”, mas não sem antes fazer a homenagem a Leonard Cohen com “Bird On The Wire”. O nosso Cohen, eu sabia, não me ia falhar.
No alinhamento não faltou “Disse Fêmea” canção que escreveu em conjunto com Maria João Velho para a peça “Carta a Uma Filha”, o tema felino do crescimento da menina mulher, a mutação do corpo e da alma, numa das expressões musicais da língua portuguesa mais bem conseguidas sobre o tema.
Herberto Helder também lhe disse para se “deixar de merdas” quando pediu para usar “Os Passos Em Volta” como inspiração para a música que levou o mesmo nome e com que nos brindou nesta noite à beira rio, enquanto um vulcão em erupção, com a lava quente a escorrer, aparecia atrás de si no vazio, transformando a matéria e destruindo-a. Herberto Helder ficou feliz, certamente.
“Dá-me Lume” fechou a primeira parte e “Portugal Portugal” fechou o pano. As vozes mais resistentes voltaram a soar alto perante a apatia da maioria, mas já se sabe “Não se pode estar direito quando se tem a espinha torta”
Parabéns Jorge Palma por um dos melhores concertos que me deu o privilégio de assistir e a toda a produção que montou um ninho perfeito para o seu nascimento.
Fotos gentilmente cedidas por Rita Carmo