Este formato, a que dei o nome de Uma Mão Cheia, foi inicialmente pensado para nele caber apenas um punhado de nomes da música popular brasileira, e assim foi evoluindo até à sua conclusão: o texto de hoje. Por aqui foram entrando, uma a uma, as discografias por mim escolhidas daqueles que mais gosto e considero desse imenso universo sonoro feito e produzido no Brasil. Depois de por aqui terem passado os nomes de Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé e Chico Buarque, cabe agora a vez a Gilberto Gil. Com ele, repito, concluirei esta longa viagem, sendo que foi com imenso prazer que fui juntando aos poucos esta pequena geografia sonora na esperança de que tenha servido, sirva ou venha a servir como porta de entrada em direção aos fantásticos mundos que os nomes citados encerram. Tarefa concluída, portanto, embora só mais daqui a alguns parágrafos.
Gilberto Gil é outro dos artistas incontornáveis do largo espaço da émepêbê. A sua obra é muito extensa e muito rica, sendo que, desde logo, o seu nome surja ligado ao início do período tropicalista. Foi, como se sabe, juntamente com Caetano Veloso, fundador dessa revolução musical que marcou o rumo da música popular feita no nosso país irmão. Ainda bem ativo nos tempos que correm (como todos os outros nomes por mim escolhidos, aliás), Gilberto Gil foi acompanhando os tempos e com eles foi mudando a sua visão artística ao longo de várias décadas, enquanto compositor, músico e intérprete. É, como Caetano, Milton, Tom Zé e Chico, um artista de exceção. Celebrar a sua obra é uma obrigação, daí a sua inclusão neste restrito grupo, nesta Mão Cheia de coisas verdadeiramente boas que tenho partilhado aqui. Vamos às escolhas, então!
Gilberto Gil (1968): Ao seu segundo disco, Gilberto Gil carnavalizou-se, tropicalizando o som que resolveu mostrar ao Brasil e ao mundo. Este é um disco manifesto, um disco que faz par com o primeiro a solo do seu mano Caetano, lançado cerca de um ano antes deste. A mudança musical e estética começa a notar-se na própria capa, em que o verde e amarelo do seu país natal ganham destaque estético, e onde Gil aparece em três imagens / poses bem diferenciadas, assumindo personagens algo desconexas, como era igualmente desconexo o tempo que se vivia. O militar e o piloto com ar de malandro podem muito bem ser metáforas de um Brasil que era, na altura, comandado pela ditadura. Gilberto Gil é um disco de rutura, mas também de inauguração de um movimento que tinha muito para dar à música popular brasileira, e que veio a marcá-la de forma inequívoca e permanente. Acompanhado pelos Mutantes (e isso não é coisa pouca), o álbum trazia grandes canções, clássicos futuros como”Marginália II”, “Pega a Voga, Cabeludo”, “Ele Falava Nisso Todo Dia” (talvez a minha preferida do lote das 10 canções do álbum), “Procissão” (aqui numa versão mais tropicalista, mais elétrica e eletrizante do que a gravada no seu disco anterior), e “Domingo no Parque”, um dos grandes sucessos da Tropicália. No entanto, e depois de referidas algumas das mais virtuosas canções de Gilberto Gil, é obrigatório mencionar a produção do maestro Rogério Duprat, principal mentor da modernidade sonora que o álbum documenta. Gilberto Gil (o artista) e Gilberto Gil (o álbum) entravam definitivamente no panteão da M.P.B. Com estrondo, pois claro, à boa maneira da revolução que Gil e Caetano iniciaram nos finais dos anos sessenta.
*se gostar deste disco, então ouça também Gilberto Gil (1969)
Expresso 2222 (1972): A ideia de abrir o disco com a instrumental “Pipoca Moderna” não é, de todo, inocente. Expresso 2222 marca o regresso definitivo de Gilberto Gil ao Brasil, após o exílio forçado em Londres. O tema de abertura transpira brasilidade por todos os seus poros sonoros. É música de índio, nativa como poucas no álbum, e expressa bem, seguramente, a satisfação sentida pelo regresso a casa. Mas os tempos na ilha europeia deixaram marcas, tanto em algumas das letras cantadas, como nos ritmos de algumas canções. No grande sucesso que foi (e é) “Back in Bahia”, Gil canta sobre o regresso à sua terra natal, mas evoca ainda os tempos londrinos. O facto do título da canção ser em língua inglesa, e de toda a letra do tema ser em português, é bastante significativo. Nela canta-se “Naquela fossa em que vi um camarada / Meu de Portobello cair”, clara referência aos tempos de depressão que Caetano Veloso passou na capital inglesa. A canção é, ainda e sempre, um clássico absoluto. Mas há mais, uma vez que este Expresso 2222 é um álbum de classe superior. Vejamos: “Chiclete com Banana”, que o grande Jackson do Pandeiro havia gravado com sucesso em 1959, tem aqui uma deliciosa e bem gingona versão bossa-novista de primeira água. “Sai do Sereno”, forró eletrizado com a voz da diva Gal Costa, traz ao disco um certo psicadelismo delirante que lhe fica a matar. Depois temos a canção que dá título ao álbum, outro tema eterno, cheio de vida, implacável! Quem nunca ouviu ou cantou “Começou a circular o Expresso 2222 / Que parte direto de Bonsucesso pra depois/ Começou a circular o Expresso 2222 / Da Central do Brasil / Que parte direto de Bonsucesso / Pra depois do ano 2000” precisa de uma urgente cura musical. A finalizar o disco, na nona e última faixa, a fantástica “Oriente”. Não só é uma composição musical de exceção, como encerra múltiplos ensinamentos. O disco termina com os versos “Determine, rapaz / Onde vai ser seu curso de pós-graduação / Se oriente, rapaz / Pela rotação da Terra em torno do Sol / Sorridente, rapaz / Pela continuidade do sonho de Adão”, fazendo prova da orientalização que começava a surgir na cabeça do músico baiano.
*se gostar deste disco, então ouça também Gilberto Gil (1971)
Refazenda (1975): O primeiro disco da trilogia “Re” (Refavela e Realce são os que a completam) coloca Gilberto Gil de novo no trilho de uma música mais marcadamente regionalista, mais afastado dos sons do rock e do tropicalismo de muitos dos seus trabalhos anteriores. Refazenda é uma benção, parecendo mais uma obra de um qualquer deus musical, do que um trabalho verdadeiramente humano. É tão perfeito, que sempre que o ouço me parece uma impossibilidade. As origens de Gilberto Gil estão intimamente ligadas aos sons do baião, e esse adn transparece no disco, embora não se esgote nisso. Abre com a beleza de “Ela”, torna-se ainda maior em “Tenho Sede”, e por aí vai, pulando de uma canção genial para outra canção genial. “Refazenda”, a canção, é apenas mais um exemplo da musicalidade fina de Gil, assim como “Jeca Total”. “Essa É Pra Tocar no Rádio” destoa um pouco do resto do álbum, até pelo facto de ter sido resgatada de registos anteriores. Mas é libertária, complexa, estridente, jazzística, embora não para todos os ouvidos. Outra canção interessante, sobretudo pela sua inteligente letra, é “Pai e Mãe”. Nela Gilberto Gil entra pelo caminho dos afetos, tema tão na moda nesse tempo, em que de forma sexualmente indiferenciada os artistas se faziam ouvir, assumindo-se muitas vezes um papel ambíguo em relação ao posicionamento e orientação sexuais. Gil escuda-se de qualquer eventual polémica introduzindo as figuras paterna e materna na letra da canção. O sempre atento Caetano Veloso chegou a afirmar que a canção “é a música mais incrível sobre afetividade que nossa geração já produziu”. E com razão, sem dúvida. “Retiros Espirituais” é outra das canções de top que Refazenda encerra. O mesmo acontece com “Lamento Sertanejo”, uma das minhas preferidas de sempre do mestre Gil. Tanta coisa invulgarmente boa numa mesma rodela de vinil!
*se gostar deste disco, então ouça também Refavela (1977)
Realce (1979): Nos últimos anos da década de 70, e principalmente nas grandes cidades do Brasil, o disco sound e as danceterias começaram a fazer parte da vida das pessoas amantes da música e da noite. Foi uma moda que se manteve durante bastante tempo, e isso teve reflexos audíveis, até nos nomes maiores da música brasileira. Aconteceu com Gilberto Gil, sobretudo no disco Realce, último momento da trilogia “Re”. Na verdade, essa realidade dançante não foi apenas um episódio transatlântico. Por cá aconteceu exatamente o mesmo, como muitos dos leitores destas linhas se lembrarão. Realce é, portanto, um disco festivo, luminoso, marcado também, no entanto, por momentos de maior intimismo, como daqui a pouco sublinharei. Mazzola, um dos grandes nomes da produção musical brasileira dos anos 70 e 80, foi o escolhido para dar a Gil e às suas composições, um certo toque de modernidade, e isso nota-se logo nos primeiros segundos da canção inicial, a deliciosa “Realce”. O que nela ouvimos é sinónimo de festa, de encantamento, de purpurina, de vida. O disco sound entrava na obra de Gilberto Gil, e entrava muito bem. O álbum é “como a noite de discothéque após o dia de trabalho”. Quem o afirmou foi o próprio Gil. Mas esse estilo é apenas uma parte das preocupações sonoras que nele encontramos. O samba marca presença, embora não de forma muito exuberante, assim como também estão bem nítidas as preocupações sociais relativas ao povo negro, como é notório no tema “Tradição”, daí podermos afirmar que modernidade e memória estejam de mão dadas neste Realce. Como se sabe, o que faz com que um disco passe a ser uma obra prima é o lote de canções que nele existem, e neste disco elas são mais do que muitas: Para além da já referida “Realce”, há ainda “Sarará Miolo”, “Superhomem – A Canção”, “Marina” (canção emblemática de Dorival Caymmi), “Rebento” e “Toda Menina Baiana”. Todas elas são monumentais, e continuam a fazer parte obrigatória do repertório de Gil. “Superhomem – A Canção” é um caso bem emblemático do que digo, pela beleza da melodia, pelo intimismo da letra, pelo ambiente que cria em qualquer ouvinte. É das melhores canções de sempre do músico de São Salvador da Bahia. A canção “Não Chore Mais”, versão de “No Woman, No Cry” encerra o trabalho, e foi um enorme sucesso. No entanto, para mim, é o único tema prescindível. Todos os outros são enormes! Gil nunca apreciou muito o disco, e a sua vida não ia andando ao seu gosto. Depois de se divorciar de Sandra, pensou mesmo em deixar a música.
*se gostar deste disco, então ouça também Luar – A Gente Precisa Ver o Luar (1981)
Um Banda Um (1982): Tinha 18 anos quando comprei Um Banda Um, e desde logo fiquei fascinado pelo disco. Há nele algumas das mais deslumbrantes canções de toda a longa carreira de Gilberto Gil. “Metáfora”, por exemplo, é impressionante naquilo que diz, e tem a medida exata da formulação das grandes canções. A letra deveria ser ensinada nas escolas (estratégia que já utilizei, obviamente), e todo o tema é coisa dos deuses. Outra canção absolutamente feliz é “Andar Com Fé”, o mesmo acontecendo com “Drão” e “Esotérico”, de que gosto para além do que alguma vez poderei dizer. Lá mais para o fim do disco, é “Ê Menina” que derrama em mim todo o seu fascínio, fazendo-me mergulhar num mar de tranquilidade sempre que a ouço. Um Banda Um mostra um músico a arrepiar caminho, voltado uma vez mais para as suas profundas raízes brasileiras e africanas (o título parece resultar de uma aproximação gráfica ao termo Umbanda, religião afro-brasileira tão do agrado de Gil). Este regresso às origens derivou do facto de Gilberto Gil andar, na altura, cheio de dúvidas quanto à sua arte e ao seu engenho, de se sentir em verdadeira crise de identidade, num processo sério e demorado de autoconhecimento, sem saber muito bem que rumo tomar. Talvez por isso Um Banda Um seja um trabalho catártico, mais do que qualquer outra coisa. Parece ser um raio de luz num caminho de sombra, uma vez “que a luz nasce na escuridão”, como se canta no verso final do tema “Deixar Você”. Depois de muito ponderar, Gilberto Gil formou uma banda, a Banda Um (o título do disco remete também para isso), seguindo um pouco a moda adotada por outros colegas de profissão (Caetano tinha formado A Outra Banda da Terra, Jorge Ben fez o mesmo com A Banda do Zé Pretinho, para dar apenas dois exemplos significativos). A aposta foi ganha, e para além das canções já referidas, o disco vale como um todo, uma vez que apresenta uma grande solidez composicional, e letras absolutamente geniais. A par de todas estas minhas convicções elogiosas, um senão dos grandes: a capa de Um Banda Um é, talvez, a pior capa do percurso discográfico de Gilberto Gil.
*se gostar deste disco, então ouça também Extra (1983)
Feitas estas cinco escolhas, discutíveis como quaisquer escolhas sempre são, importa referir que muito mais há a descobrir nas mais de 60 obras que Gilberto Gil já teve ocasião de lançar. É um músico imenso, um sobredotado instrumental (a arte de tocar o seu violão é impressionante), um nome que não engana, nem se apagará nunca. Mesmo para mim, que andei um pouco desavindo com o músico durante um determinado tempo, uma certeza tenho como absoluta: Gilberto Gil é um lugar sempre seguro, e se nele sentirmos algum sinal que nos transmita insegurança, é certo que ela residirá num qualquer problema nosso, e nunca nele. Saravá, Gilberto Gil!