E eis que surge Chico, no quarto degrau desta escadaria! Chico Buarque de Holanda é, como todos sabemos, um nome incontornável da história da música popular brasileira. Meticuloso escritor de canções, artífice ímpar da palavra escrita, músico socialmente empenhado, sobretudo nos tempos em que a ditadura militar mostrou a sua face sombria, Chico Buarque soube construir uma obra sólida, quase sem estremecimentos de percurso. Se essa é uma grande virtude, é também essa a razão que o coloca num estreito e muito particular patamar do panorama musical do seu país, sobretudo depois de se ter desvinculado de uma certa militância ideológica mais evidente: Chico é, cada vez mais, autor de “um mesmo disco”, de “um mesmo som”, que vai tentando, trabalho após trabalho, lapidar, melhorar, acrescentando apenas em cada um a sua sabedoria de ourives musical para que nada falhe, para que nada falte, para que tudo seja perfeito. Na minha opinião, esse fator foi menorizando a sua obra, principalmente se tivermos em perspetiva a inevitável comparação que pode e deve ser feita tendo em conta uma obra extensa e de grande qualidade. De uma coisa não tenho dúvidas: o melhor Chico é o da década de 70, e por isso não é de estranhar que quatro dos cinco discos em apreço pertençam a essa década.
Construção (1971): Confesso que o Chico Buarque menino querido da bossa, o Chico que via a banda passar, esse nunca me cativou. Daí ter escolhido, como primeiro desta lista, o álbum Construção por me parecer tratar-se de um disco de rutura com esse passado bem comportado. Aqui, e sem margem para grandes dúvidas, o tom mudou, o engajamento político e social tornou-se uma atitude mais séria, alavancando a arte e o engenho do músico carioca. Boa parte das canções de Construção foram compostas no exílio de Itália, país onde Chico permaneceu cerca de 15 meses. Outras, talvez as mais líricas, nasceram já em território pátrio. O lirismo delas, e refiro-me a temas como “Desalento”, “Samba de Orly” ou “Valsinha”, contrasta em absoluto com um outro Chico, bem mais politicamente engajado. É esse o Chico de “Deus Lhe Pague”, de “Cotidiano”, mas sobretudo de “Construção”, que retoma, nos minutos finais, o tema de abertura do álbum. “Construção” é, seguramente, um dos temas mais complexos e idiossincráticos de toda a sua carreira, hino de um tempo e de um estado de alma bem específicos, iniciado nos finais de 1968, espelho dos chamados anos de chumbo da ditadura militar brasileira. A mudança de carreira que Chico Buarque precisava, deve-a, em boa parte, à mudança política no Brasil. Esse facto trouxe-lhe alma nova, novo alimento poético e estético, o que foi artisticamente bem proveitoso. No entanto, o preço a pagar foi elevadíssimo, não só para si, mas para o povo brasileiro. Outro aspeto a ter em conta a propósito de Construção, é que o disco inaugura uma fantástica parceria com o enorme poeta e boémio Vinicius de Moraes. Considerado por muitos dos seus fãs como o mais importante disco da sua carreira, Construção permanecerá eterno e cimeiro na história da música popular brasileira. Disso ninguém poderá duvidar.
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Chico Canta Calabar (1973): Chico Canta Calabar é o décimo disco a solo da carreira de Chico, e um dos que, seguramente, mais difícil gestação teve. Perseguido pela ditadura militar, Chico Buarque sofreu bastante para conseguir continuar o seu trabalho de artista. Lutando ferozmente para levar à cena a peça Calabar – O Elogio da Traição, texto dramático feito em parceria com o cineasta moçambicano Ruy Guerra, a verdade é que, nas vésperas da estreia, a peça foi proibida. O abalo foi enorme, como facilmente se poderá compreender. O disco do espetáculo também foi sujeito a múltiplas formas de censura, a começar pela capa e pelo título, que foi pensado como Chico Canta Calabar, acabando por ficar apenas Chico Canta. Mas não só, uma vez que algumas das letras das suas canções foram vetadas. “Vence na Vida Quem Diz Sim”, “Fado Tropical” e “Bárbara” são exemplos bastante conhecidos da fome censora da política persecutória praticada na época em relação à obra de Chico Buarque. Certos versos aparecem silenciados, e essa ausência sonora é gritante… O disco é de uma qualidade absolutamente inequívoca, um dos meus discos preferidos de Chico. Abre em tom épico num belíssimo instrumental, e avança para “Cala a Boca, Bárbara”, de um lirismo dolente e sofrido, como só Chico sabe inventar. Os nomes Ana e Bárbara, personagens principais da peça, vão-se movendo por várias canções, habitando-as, insinuando-se nelas, mulheres fortes, marcadas pelas vidas que vão tendo. É também neste disco que Chico Buarque sujeita as suas letras a um eu feminino que se faz ouvir provocatoriamente. Em “Bárbara”, por exemplo, o amor lésbico irrompe na sua obra pela primeira vez. A letra dessa canção revela um diálogo entre as personagens femininas em questão, e é dos mais belos textos de amor que Chico alguma vez escreveu. A canção “Tatuagem”, a terceira do disco, é um dos clássicos que o trabalho encerra, a par de outros como as já referidas canções “Bárbara”, “Fado Tropical”, e ainda “Ana de Amsterdam”, embora aqui surja apenas numa versão instrumental, ou “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”.
* se gostar deste disco, então ouça também Ópera do Malandro (1979)
Meus Caros Amigos (1976): Este terá sido, sem sombra de questionamento, o último disco de Chico Buarque sujeito à dura censura do regime militar brasileiro da época. No entanto, no seu trabalho anterior (Sinal Fechado, 1975), e para se perceber melhor a gravidade do caso, apenas uma das composições era sua, embora “disfarçada”, assinada com o pseudónimo … Isto porque o pulso firme dos censores não perdoava nada, e Chico parecia ser um dos alvos preferidos dos militares. Meus Caros Amigos chegava ainda em plenos anos de chumbo, embora o ar que se respirava fosse já menos denso. O disco fez bastante sucesso. A crítica e o público consideraram-no um dos seus melhores trabalhos de sempre, e são muitas as razões para que muitos possam concordar com essa afirmação. O disco abre com a portentosa “O Que Será (À Flor da Terra)”, canção do brilhante Dona Flor e Seus Dois Maridos, filme do cineasta Bruno Barreto, baseado no conhecido romance de Jorge Amado. O cinema e o teatro sempre foram palcos por onde Chico andou como peixe na água. Meus Caros Amigos mostra isso muito bem. Para além da canção inicial, outras há que pertencem a esses universos, como são os casos de “Mulheres de Atenas”, da peça Lisa, a Mulher Libertadora, de Augusto Boal; “Você Vai Me Seguir”, da peça Calabar, O Elogio da Traição; “Vai Trabalhar, Vagabundo”, do filme de Hugo Carvana, com o mesmo nome; “A Noiva da Cidade”, do filme de Alex Vianni, também com esse mesmo título; “Passaredo”, tema do mesmo filme de Vianni e “Basta Um Dia”, da peça Gota d’Água, do próprio Chico Buarque em parceria com Paulo Pontes. Durante o período de Meus Caros Amigos, Chico fez poucas aparições públicas, tendo decidido afastar-se dos palcos, o que veio a acontecer durante quase doze anos. Para além de se preocupar com outras manifestações artísticas (a escrita, sobretudo), Chico Buarque temia ser visto como símbolo cantante da luta contra a ditadura e de ser, de alguma forma, engolido pela indústria fonográfica da altura. O disco foi um enorme sucesso, e Chico Buarque tornou-se, mais do que nunca, um dos meninos mais queridos da música popular brasileira. Merecidamente, aliás. Meus Caros Amigos é um fantástico álbum!
* se gostar deste disco, então ouça também Chico Buarque (1978)
Vida (1980): Chico mudou. Mudou a maneira de ser e de estar na música, mudou o seu posicionamento cívico, mudou a sua vida. Os anos 80 foram tempos de grandes mudanças. Chico Buarque não era mais o agitador, o rebelde, o ponta de lança das preocupações sociais do seu Brasil. Chico nunca mais foi o mesmo, aliás. Vida é, portanto, um disco de total corte com o passado. Ao décimo oitavo álbum, tudo se transformou em outra coisa, uma coisa mais lírica, uma arte mais romântica, mais subtil. A faixa que dá nome ao disco, um dos grandes sucessos deste trabalho, mostra-nos exatamente isso. Chico Buarque tece uma severa autocrítica ao seu percurso e à sua trajetória de vida. Os versos não enganam: “Vida, minha vida / Olha o que é que eu fiz / Toquei na ferida / Nos nervos, nos fios / Nos olhos dos homens / Mas, vida, ali / Eu sei que fui feliz”. Os tempos eram já outros, e nessa passagem, o Chico que tão bem conhecíamos da década anterior, havia passado também. Embora continuasse a existir grande incerteza quanto ao futuro político do Brasil, uma certa abertura democrática ia ganhando o seu espaço, mesmo que timidamente. A peça Calabar, o Elogio da Traição foi finalmente liberada, quase 8 anos após a sua inicial proibição. Todo este novo cenário, como facilmente se entenderá, fez de Chico um músico menos inquieto, mas mais maduro. Vida reflete esse novo estado de alma, e traz canções antológicas, como é o caso da canção já acima referida, o mesmo acontecendo com “Mar e Lua” (que é, para mim, a mais bonita canção do disco, e uma das mais belas de toda a sua produção musical), ou com o samba “Deixe a Menina”. “Eu Te Amo”, canção título do impúdico filme de Arnaldo Jabor, é outra das boas composições presentes em Vida, assim como a conhecidíssima “Morena de Angola”, sendo que o último verdadeiramente memorável surge lá mais para o fim do álbum. Chama-se “Bye, Bye, Brasil”, e Chico volta a estar ligado, uma vez mais, ao cinema, fazendo parte da trilha sonora do filme de Cacá Diegues.
* se gostar deste disco, então ouça também Almanaque (1981)
Paratodos (1993): Passada a década de 80, há que dizer que os anos estreantes do decénio seguinte foram de enorme apreensão para os apreciadores da música de Chico Buarque. Havia já quatro que nada se ouvia da voz do cantor, uma vez que as preocupações do músico estavam totalmente viradas para a literatura, mais propriamente para o romance Estorvo, o primeiro que o músico escreveu. Por isso, pela ausência de novas canções, o aparecimento de Paratodos representou um enorme alívio para os inúmeros amantes da música de Chico Buarque. O mínimo que se pode dizer é que a espera valeu bem a pena, uma vez que o disco de 1993 é, na minha modesta opinião, o último grande trabalho do compositor até à presente data. Sei que esta frase incomodará alguns leitores, mas é exatamente isso que penso. Paratodos é excelente, e traz consigo ótimas canções, algum ar fresco (mas não mais do que isso, não havendo nele ventanias ou correntes de ar indiciadoras de outros rumos a seguir), uma diversidade poética e musical assinaláveis. Muito perto de completar 50 anos de idade, este Paratodos pode muito bem representar a maturidade verdadeiramente assumida por Chico (ela já se havia manifestado em Vida, como dissemos antes), embora também ganhando aspetos de crise de identidade, que esse meio século tantas vezes comporta. Há em Paratodos duas enormes canções. A primeira, autêntica obra de arte, é a canção homónima, que serve como tema de abertura. Chico faz numa homenagem sentida a muitos dos homens e dos artistas que fizeram parte da sua história, bem como da história da música popular brasileira, salientando um, mais do que quaisquer outros: o “maestro soberano” António Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Nessa canção há referências a outros monstros sagrados, entrando em desfile, verso após verso, Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, Vinícius de Moraes, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Cartola, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Orestes, Caetano, Gil, João Gilberto, Erasmo, Roberto Carlos, Jorge Ben, Edu Lobo, Rita Lee, Bituca (ou seja, Milton Nascimento), Gal, Bethânia, Hermeto, entre outros. Sublime! Inesquecível! Genial! A outra canção magistral é “Sobre Todas as Coisas”, tema do início dos anos 80, composto em parceria com Edu Lobo para o balé O Grande Circo Místico. Para além destes óbvios destaques, temos ainda “Tempo e Artista”, belíssimo texto sobre o tempo, esse grande inimigo da vida, ao mesmo tempo que é, igualmente, nosso bom aliado na maneira sábia como nos vamos guiando nele. “Futuros Amantes” também merece uma audição especial. O último tema do disco, a faixa intitulada “A Foto da Capa”, é bem curioso. Não que seja uma grande canção, mas vale sobretudo pelo texto cantado, belíssimo poema, revelador de um acontecimento distante da vida de Chico. Na verdade, a capa do disco mostra, bem ao centro, uma “chapa de polícia” em que o cantor aparece, como é norma nesses casos, de frente e de perfil, com a identificação R 5950. Chico havia sido detido juntamente com um amigo, no final de 1961, por terem roubado um carro nos arredores do estádio do Pacaembu, apenas para se divertirem madrugada fora. Esses episódios de contornos delinquentes podem ser lidos no último romance de Chico Buarque, intitulado O Irmão Alemão. Os versos iniciais da canção que finaliza Paratodos são mais uma prova da entusiasmante veia poética de Chico. Dizem assim: “O retrato do artista quando moço/ Não é promissora, cândida pintura / É a figura do larápio rastaquera / Numa foto que não era para capa / Uma pose para câmera tão dura / Cujo foco toda lírica solapa”. Brilhante, tal como o disco!
E pronto, está feito o meu pequeno tributo à obra de Chico Buarque. Como sabemos, o músico vem gravando até aos dias de hoje, sempre com assinalável sucesso por parte da crítica e do público. No entanto, repito o que afirmei no início deste texto: o melhor Chico é mesmo o da década de 70. Não tenho alguma dúvida sobre isso. Na minha opinião, Chico Buarque continua a ser um artista finíssimo, um enorme arquiteto de canções, um poeta maior. Mas não o convidem para sair da sua zona de conforto. É nela que permanece há muitos e muitos anos, e será nela que se manterá até ao fim da sua existência artística. Que venha longe esse fim, e que até lá nos vá dando mais discos, mesmo que sejam “os mesmos discos dos últimos longos tempos”.