O regresso aos palcos dos TV Rural não foi só um festim de rock’n’roll; foi uma noite mágica e comovente.
Nunca se deve regressar a um sítio onde se foi feliz? Treta! Foi justamente isso que os fãs dos TV Rural – sempre fiéis – fizeram quando encheram o Musicbox na terça-feira passada, sete anos depois de um mítico concerto na mesma sala, e seis anos volvidos sobre o anúncio do fim da banda: reviver um passado onde foram felizes, fintando a velhaca da passagem do tempo. Por isso, o concerto foi tão comovente. Não foi apenas música. Não foi apenas o – excelente! – rock cantado em português (e, quando começaram, contavam-se pelos dedos os que o faziam, é bom lembrar). Não foi apenas uma máquina oleadíssima de riffs e grooves e certeiros refrões. No centro de tudo estava outra coisa: uma profunda cumplicidade entre público e banda, a cumplicidade de uma história comum.
Não era só David Jacinto que cantava, com aquela sua voz rouca e frágil e tão expressiva: era toda a sala que entoava as mesmas palavras, as mesmas melodias, a mesma comoção, como se de um único organismo se tratasse. Não nos espantamos. Numa injustiça cósmica imperdoável, os TV Rural nunca subiram para o patamar seguinte de uma notoriedade nacional, mas no seu território – a linha de Cascais, entrelaçada com Lisboa – sempre foram uma banda de culto, reunindo à sua volta uma sempre leal legião de fãs. Os indefectíveis não faltaram à chamada, como poderiam?
Como seria de esperar num concerto de regresso aos palcos, o alinhamento cobriu toda a sua obra, de Filomena Grita! (2007) à A Balada do Coiote (2012), passando pelo EP Barba (2014), mas curiosamente foi o último álbum Sujo (2015) que mereceu mais canções, sugerindo o que já desconfiávamos: os TV Rural terminaram cedo demais, no seu auge criativo.
Se sempre foram uma banda democrática, sem líderes nem hierarquias, o que é certo é que Jacinto se destacou, cantando como quem cospe a alma, fazendo as mais engraçadas carantonhas, contorcendo-se pelo palco como um animal ferido. Só na icónica “Quando Troveja”, d’A Balada do Coiote, é que os holofotes se viraram para Vasco Viana, daí, talvez, os óculos escuros – o guitarrista assumindo a voz principal, Jacinto dançando na retaguarda…
Quando chegaram à musculada “Bailarina”, a malta saiu do modo “abraçados a cantar embevecidos” para o modo “mosh”, como mandam as regras do rock a rasgar. Depois de “Eu no Muro”, a banda retirou-se para um merecido descanso do guerreiro mas o bandalho do público não permitiu. Lá tiveram os desgraçados de regressar para um primeiro encore. Jacinto fingiu que cantava “Under the Bridge” dos Red Hot, até a brincadeira desembocar nos “Navegadores de Recreio” do álbum de estreia.
Seguiu-se uma canção muito especial, “Notas Sobre Metodologias Para o Bem Estar”, estreada no primeiro concerto dos TV Rural, em Évora, no longínquo ano 2000; não obstante nunca ter sido gravada, é bem conhecida dos fãs da velha guarda, que a trautearam de cor. O público por esta altura estava ainda mais eufórico, subindo ao palco, e mergulhando na multidão, o que deu origem a um dos momentos mais ternos da noite: a própria filha do Jacinto, adolescentíssima, envolvida num desses loucos stage diving, numa simbólica passagem da chama do rock para a próxima geração.
A banda retirou-se novamente mas o público não se calou enquanto não regressaram para o último encore, despedindo-se com a desengonçada “Mulher da Minha Vida”, d’A Balada do Coiote: João Pinheiro escalando a bateria, juntando-se à linha da frente, abraçado a Vasco Viana e aos dois Davids, todos cantando, de instrumentos pousados, quase à capela, só com a guitarra acústica de Gonçalo Ferreira desenhando os trôpegos acordes, cinco velhos amigos, esquecendo-se da sua idade, parecendo que tinham outra vez vinte anos no primeiro concerto de garagem.
Claro que no fim de uma noite tão mágica o dique acabou por rebentar: Jacinto agradecendo com a voz embargada, David Santos com os olhos marejados em lágrimas. Dizem que os homens não choram. Diz-se tanta parvoíce…
Alinhamento
- Correr de Olhos Fechados
- Tiro no Pé
- Se te Faz Tremer
- Escafandro
- Quem me Chamou
- Não Sou Uma Flor do Teu Jardim
- Pedra é Pedra
- Saio Daqui a Olhar em Frente
- Elas Deram as Mãos
- Em Menos de Meia Hora
- Quando Troveja
- Caga Nisso
- Um Febrão que Custa a Curar
- Maratona
- Morde-me
- Sagres
- Bailarina
- Eu no Muro
- Navegadores de Recreio
- Notas Sobre Metodologias Para o Bem Estar
- Mulher da Minha Vida
Fotografia: Rui Gato