Papillon tem uma relação privilegiada com as palavras. Com a sua forma, sonoridade e sentido. É, acima de tudo, um artífice da caneta e da página em branco, mas que tem também um sentido estético apurado e uma ética de trabalho inesgotável.
No seu primeiro disco a solo – Deepak Looper -, Rui Pereira avisava que ia levar os ouvintes a assistir uma lição na “escola da vida”, projectando em cada uma das faixas um pedaço da sua história (e o que aprendeu com cada episódio vivido). Mostrava o caminho da larva à borboleta (passando a metáfora batida). Jony Driver mantém esse fito de mostrar a vida e o mundo do rapper de Mem Martins, mas olhando ainda mais para trás e almejando para ainda mais tarde. Conhecemos a vida do pai de Papillon (o Jony do título) e aprendemos sobre o que motiva Rui a seguir em frente. Tudo isto embrulhado em canções de excelência.
“Não faço música negra, nem música branca/ É catering à pala, p’ro pensamento e para a anca” cantava Papillon em 2018, na primeira etapa do estado evolutivo a que deu o nome Deepak Looper. Esse primeiro esforço a solo era muito mais imediato: cheio de bangers de club e canções com menos de cinco minutos – que são uma raridade em Jony Driver que se apresenta como um disco mais direcionado para a cabeça e para o coração do que para os pés e as ancas e que pisca o olho mais aos heads de hip hop do que aos ouvintes do Top40 da Billboard.
Numa entrevista ao Gonçalo Correia, no Observador, Papillon comparou os dois discos: “O primeiro disco é uma expressão de toda a energia que tinha cá dentro. O Deepak Looper é um álbum extremamente pessoal, existiam ali coisas que não se enquadrariam em música de grupo, em GROGNation. Tinha anos de coisas acumuladas que queria dizer e aproveitei para descarregar energia para tudo o que era lado, nem via para onde estava a apontar, era só disparar”. Agora, foi diferente: “Aqui, depois de entender que existia essa energia e que de alguma maneira funcionava, quis tentar dominá-la. Quis que fosse mais calculada a forma como ela é passada para os temas”.
Papillon convidou alguns dos melhores produtores nacionais para coserem os beats deste disco mais calculado: Slow J, Fumaxa, Holly ou Charlie Beats contribuíram para criarem as bases mais festivas, introspectivas e dinâmicas que se ouve ao longo desta hora e vinte. Por cima, a voz de Papillon modula-se em mil flows distintos, uns mais arrastados profundos, outros em que parece ter canalizado o seu Busta Rhymes, disparando em todas as direcções como se fosse uma metralhadora – oiça-se o flow impresso no terceiro verso de “Y.”. Este verso é também um excelente exemplo da mestria lírica de Papillon, a forma como salta à corda com o sentido e a assonância das palavras: “ Eu não quero ouvir nem um pio/ Papillon Senpai, só p’ra quem sentiu/ A missão recebeu e a missão cumpriu/ Semeou e colheu a maçã sem til”.
Mas desengane-se quem acha que os versos acima são representativos do que este álbum vem contar. O ego trip ocupa um espaço reduzido em Jony Driver. “D.O.R.” é uma canção-carta de Papillon ao pai, a entidade que paira por cima deste naipe de canções. Com um verso onde parece imitar (a melhor forma de homenagem) Slow J, canta um refrão simples, mas cheio de significado: “Desculpa, obrigado, tinhas toda a razão”. E este refrão é o remate perfeito para os versos onde Papillon vai expressando as saudades e agradecimentos ao pai.
Rui Pereira elevou-se dos ombros dos gigantes que lhe precederam. Aproveitou para aprender com todos aqueles que se cruzaram no seu caminho (Sam the Kid, Slow J, Emicida ou Capicua) e aperfeiçoar a sua arte e engolir o mundo.
“Não vim p’ra fazer barulho, só vim p’ra fazer a diferença
Aqui p’ra mudar o mundo sem ter que lhes pedir licença”