Pornography é o disco onde os Cure se descobrem claustrofóbicos, transformando a depressão em epopeia.
Os Cure não começaram góticos: Three Imaginary Boys é pós-punk esperto e nervoso e “Boys Don’t Cry”, com o seu desaforo pop, pede mesmo protector solar. Só em Seventeen Seconds e em Faith é que começam a explorar o negrume, mas a sua melancolia ainda é respirável, como quem entristece debaixo do sol da planície alentejana, diluindo o desgosto na beleza e imensidão da paisagem. Ora isso é batota: tristeza sem claustrofobia não é tristeza coisa nenhuma, é dor boa, pouco mais do que ócio e saudade.
Felizmente para a história do goth rock que o trio inglês fica mesmo na merda em ’82. Robert Smith deprime-se, as relações dentro da banda azedam, não ajuda o viverem todos ao molho no chão do escritório da editora, e nem sempre os caldos de whisky e LSD conseguem afogar devidamente as mágoas. O dilema era simples: ou Smith se atirava de um vigésimo andar ou sublimava a sua angústia fazendo um dos discos mais sombrios de sempre. Robert tomou a decisão mais sábia. Pornography foi feito.
Os acordes à filmes de terror e a teatralização glam do sofrimento são o ponto de partida. Mas é a bateria destacada na mistura, tão circular e implacável como maquinal e fascista, que explica 80% do disco. Quando a esta brutalidade se junta um baixo minimal e cortante, uma guitarra redonda e pungente, e um órgão de igreja quase satânico, o resultado final é a mais asfixiante claustrofobia. A sensação é a de estarmos encurralados num beco sem saída, esmagados (garante-nos a voz de cartolina do anúncio) pela mais pura angústia do mercado (não respire, continue a não poder respirar).
Ora o traço que mais associamos à estética dos Cure é justamente esta sensação de claustrofobia. Mais. É também neste momento que adoptam o seu famigerado visual: roupas pretas, lábios pintados, penteados de esfregona desgrenhada, ténis-bota brancos, enfim, tudo o que Siouxsie era e o que Eduardo Mãos de Tesoura será. Juntando dois mais dois percebemos que os Cure, tal como hoje os conhecemos, só nascem neste mágico instante, ao quarto disco, com esta pérola da asfixia psicológica chamada Pornography.
Mas nem só de certidões de nascimento vive este álbum. É também de elegância formal, de depuração requintada, de sofisticada lentidão, de irrepreensível bom gosto. A sua coesão é tão rigorosa que há qualquer coisa em Pornography de manual de procedimentos para um rock gótico, o que pode parecer uma crítica ao seu formalismo, mas é de facto um elogio – à sofisticação e unidade da sua estética.
Por fim, há o estranho caso do seu psicadelismo. Os Cure consumiam então ácidos aos baldes, hábito que, naturalmente, transbordou para a sonoridade do disco. Onde a viagem irreal é mais evidente é em “Short Term Effect”, com os seus ecos, a sua guitarra arabesca e onírica à Hendrix, as suas dissonâncias e distorções fantasmagóricas. Dissemos “estranho caso” porque à superfície tudo no punk e no pós-punk é uma reacção aos anos 60. Mas quando raspamos o verniz depressa percebemos o quanto Pornography deve, de facto, ao rock psicadélico dos sixties. Não o psicadelismo florido da paz e amor mas o psicadelismo negro e cínico à Doors e Velvet, repassado de bad trips, visões de morte e sujidade espiritual. I will never be clean again…
Pornography é maravilhoso mas não é ainda a obra-prima dos Cure. A sua monotonia melódica não lhe permite rivalizar com Disintegration. É claro que o seu quase tédio cumpre uma função: criar uma atmosfera cinematográfica de torpor e sofrimento. Ainda assim, Disintegration é mais consistente e ambicioso, mais mágico e poético. Mas Pornography terá sempre uma vantagem: foi o primeiro. Sem este arrojo inaugural (na exploração da claustrofobia épica) nunca haveria os tomos seguintes.
Por isso, muito obrigado. Transformando o fel do desespero no mel da criação soa menos sinistro o primeiro verso. Soa até esperançoso. It doesn’t matter if we all die…