The Top tem essa estranheza, de ser tudo e o seu contrário, luz e sombra, amor e raiva, às vezes tudo na mesma canção.
Fazer Pornography foi um pesadelo. Levá-lo em digressão, ainda pior. Robert Smith e Simon Gallup chegam mesmo a vias de facto: amigos de infância, irmãos espirituais, esmurrando-se por uma qualquer razão idiota. Não foi bonito. O baixista abandona a banda. Os Cure estão à beira do fim.
Renascem, porém, das cinzas em forma de dueto: Robert Smith tocando tudo mais um par de botas, Lol Tolhurst passando da bateria para os sintetizadores. Encontram uma saída de emergência interessante: matar os Cure góticos, banhando-se em luz. E assim fizeram três singles descaradamente pop: a brincadeira marota de “Let’s Go to Bed”, a synthpop dançável de “The Walk” e o falso jazz de “The Love Cats”. Trilogia perfeita, diga-se de passagem. Os novos Cure estão vivos e recomendam-se.
E é neste ponto que desembocamos em The Top, o longa-duração seguinte, um disco que nem é carne nem é peixe. Não é gótico como Pornography, apesar de haver muito negrume. Não é pop como os singles que o antecederam (e como o The Head on the Door que o seguirá), apesar de andar lá perto. Mesmo a orelhuda “Caterpillar” começa desconfortável, com um piano dissonante e um violino incómodo. Que single enorme, aliás, de longe o tema mais bonito do disco.
The Top tem essa estranheza, o de ser tudo e o seu contrário, luz e sombra, amor e raiva, às vezes tudo na mesma canção. De onde vem esta fragmentação? A resposta só pode ser uma: da cabeça de Robert Smith. É que nenhum disco dos Cure se assemelha mais a coisa sua do que o esquizofrénico The Top. Lembremos os factos: Simon Gallup abandonara a banda; o alcoolismo de Lol Tolhusrt tornava-o irrelevante. Três menos dois é igual a um. Um e um quarto, vá.
Onde estava então a cabeça de Robert Smith? O mundo interior tem sempre o seu quê de incomunicável mas de uma coisa podemos estar seguros: Robert não queria repetir o disco anterior. Por todas as razões e mais algumas. Onde Pornography era guitarra, The Top é sintetizadores. Onde o primeiro era de uma coesão estética quase totalitária, o segundo é múltiplo, caótico e incoerente. Onde antes havia forma e elegância surge agora uma massa disforme, ou não fora “Shake Dog Shake” – a canção de abertura – orgulhosamente feia, desleixada e bruta.
Mais: Robert Smith queria muito que os seus Cure não morressem. Isso explica a direcção da raiva, virada para dentro em Pornography, virada para fora em The Top. A agressividade punk de “Give Me It” faz disso prova: um grito desesperado de vitalidade, um manguito contra o fatalismo auto-destrutivo, e o tema mais violento em toda a discografia dos Cure.
Depois vem a relação com a sexualidade. Pornography era a negação do desejo, onde o sexo era entendido como algo sujo e vil. The Top reage a esse pessimismo erótico, oferecendo-nos o groove sedutor de “The Birdmad Girl” e a sensualidade exótica de “Dressing Up”. Marvin Gaye para apaixonados suicidas.
Pornography não pertence a lugar nenhum, é todo ele feito da matéria dos sonhos (ou, melhor, dos pesadelos). The Top é diferente, um disco inequivocamente urbano, cheio de bazófia citadina, de buzinas e luzes frias de néon, de guarda-chuvas a bater uns contra os outros.
Ainda assim, Robert Smith não consegue levar o seu projecto até ao fim. Pornography não é inteiramente destruído. O seu psicadelismo negro mantém-se intacto, salpicando todo o The Top. O clímax da alucinação sombria acontece em “Wailing Wall”. Transe arabesco e escuridão em partes iguais.
A conclusão é, pois, inevitável. Podes fugir da pornografia. Mas não é fácil tirares a pornografia de ti.
No sentido metafórico.
É claro.