No início da década de 80, Smith e companhia lançavam-se numa floresta negra. Depois de se perderem nos seus encantos e horrores, o resultado foi Faith: o seu primeiro álbum gótico em todo o esplendor que viria a mitificar a imagem dos The Cure.
Em 1980, os The Cure contavam com dois álbuns na bagagem. Three Imaginary Boys e Seventeen Seconds são dois tratados de post-punk altamente competentes. Contudo, se é certo que o segundo já mostrava uma veia mais negra, nada fazia prever o rock gótico, minimalista e atmosférico contido em Faith. Gravado durante esse ano e lançado já em 1981, Faith foi a primeira de várias obras-primas na carreira da banda britânica.
No entanto, não era para ter sido assim. As primeiras demos para o terceiro LP dos The Cure mostravam a banda a seguir uma direção semelhante à dos álbuns anteriores. A par de outros problemas, uma experiência particularmente traumática de Robert Smith acabou por moldar grandemente o som de Faith: a morte da avó de Smith, quando este tinha 20 anos. Na ressaca desta perda e confrontado com o fantasma da morte, o cantor e guitarrista da banda escreveu “The Funeral Party”. Versos como “Memories of children’s dreams / lie lifeless, fading lifeless / hand in hand with fear and shadows / crying at the funeral party” eram demasiado pesados para os instrumentais que tinham sido criados aí. Era preciso dar às palavras o envolvimento sombrio, gélido e distópico que estas pediam. E assim nasceu Faith.
O baixo hipnótico de “The Holy Hour” cai-nos em cima como o chamar dos sinos à igreja num crepúsculo particularmente cinzento. A faixa inaugural do disco é um convite a perdermo-nos no nevoeiro que rapidamente se adensa à medida que a música cresce. A guitarra serpenteia entre acordes menores e dissonantes e confunde os nossos sentidos. As pistas para o que se irá desenrolar ao longo de Faith estão todas aqui. Contudo, antes do breu nos engolir por inteiro, “Primary”, único single de do álbum, surge para nos agitar e atormentar. A bateria mecânica e rápida toma conta dos nossos pés, enquanto os baixos vão dançando à nossa frente, numa melodia icónica e inconfundível. As letras, por outro lado, são desconcertantes – e foi assim que uma música tão influenciada pelo post-punk que marcava os primeiros lançamentos dos The Cure assinalava o seu salto para o gótico. Numa faixa que nos confronta com a perda de inocência (“The further we go and older we grow / The more we know the less we show”), Smith sugere que talvez seja melhor morrer cedo, inocente e feliz, para evitar os pesar e as feridas da vida.
Na exótica “Other Voices”, os The Cure regressam ao minimalismo da faixa inicial. Contudo, “All Cats Are Grey” mergulha nele por inteiro. Este é o primeiro momento em que Faith nos cobre com os seus braços nebulosos, guiando-nos para dentro de uma gruta sombria onde nos iremos perder até aos últimos momentos do disco. A bateria é esquiva, coberta numa reverberação gélida. O sintetizador suave como veludo junta-se ao baixo numa leveza atmosférica e sedutora. Durante dois minutos, a sinfonia minimal é tudo o que preenche o espectro sonoro, até que surge um vulto na forma da voz de Robert Smith, a fazer ecoar pelas paredes da caverna palavras desoladoras: “I never thought that I would find myself / In bed amongst the stones / The columns are all men begging to crush me / No shapes sail on the dark deep lakes / And no flags wave me home”. O desalento e resignação na inflexão vocal de Smith são absolutamente devastadoras – e mostram aquela que sempre foi uma das melhores qualidades do britânico enquanto cantor: saber com uma precisão assustadora a entoação exata que as suas palavras necessitam.
Subitamente, depois de um fade out subtil, surge um vento gélido na forma de sintetizador. A cada acorde uma rajada. E então, Robert Smith começa a cantar a belíssima e profundamente triste poesia de “The Funeral Party”. O movimento lento do instrumental nesta marcha fúnebre — com o passo marcado por uma bateria distante e inconsolável – torna ainda mais pesadas as palavras enlutadas de Smith, que, envoltas num manto negro, relatam cruamente a agonia excruciante da perda. Ouvir “The Funeral Party” é quase uma tortura, tal é a forma como a faixa parece sugar-nos para este turbilhão emocional. Contudo, é também a forma como esta faixa se aloja à volta do coração do ouvinte e o aperta que a torna numa das melhores faixas do álbum.
Sem interrupções, “Doubt” explode num grito contra o absurdismo da existência humana, sendo, em último caso, uma ação absurda em si mesma, já que “Again and again, your body falls / The movement is sharp and clear and pure and gone / I stop and kneel beside you / Knowing I’ll murder you again tonight”.
Então, Faith entra na sua reta final, feita de paisagens glaciais, num tratado de perfeição em dois atos. Primeiro, temos “The Drowning Man”, um retrato aterrador da morte da inocência e do amor cego. Com uma letra inspirada pela série de romances Gormenghast de Mervyn Peake, o instrumental envolve-nos sedutoramente: a guitarra e o baixo criam uma harmonia rodopiante, enquanto a bateria hipnotiza com a sua cadência. Fantasmas da voz de Robert Smith aparecem aqui e ali como desesperados gritos de socorro. Quando ultrapassam o manto de reverberação, as palavras de Smith surgem em catadupa, numa agonia palpável: respirar entre versos é impossível, o que faz com que o cantor pareça estar a afogar-se. Numa decisão de produção altamente perspicaz, os versos em que Smith se permite tomar fôlego são os de maior carga significativa (“The water bows, receives her / Drowns her at its ease” ou “You leave me breathing like the drowning man”).
Depois da claustrofobia que se vai construindo ao longo do álbum, com clímax em “The Drowning Man”, os The Cure finalmente permitem-nos vislumbrar alguma esperança. Contudo, só mesmo nos últimos segundos de “Faith”, faixa que encerra o disco, é que isso acontece – e, ao invés de uma história bonita com um final de lágrima no olho e sorriso na cara, é através de alienação que esta esperança redentora nos é oferecida (“I went away alone / With nothing left but faith”). Antes disso, o caminho é sinuoso, cinzento e sinistro. No seu icónico Fender Bass VI, Robert Smith vai acompanhando Simon Gallup, enquanto constrói a melodia soturna de “Faith” e pinta imagens de terror e desolação (“Rape me like a child, christened in blood / Painted like an unknown saint”, por exemplo). O álbum tem o seu término com um “with nothing left but faith” repetido ad infinitum, despedindo-se tão misteriosamente como começara 36 minutos antes.
Faith é daqueles álbuns em que a capa não mente: desde o primeiro segundo, somos envoltos numa neblina cinzenta, que se torna mais densa ao longo do disco, até tudo à nossa volta se transformar numa coleção de vultos e sombras. “Carnage Visors”, uma fantástica soundscape de 27 minutos (incluída na edição long-play da cassete), criada para acompanhar a curta-metragem com o mesmo nome que tomou o lugar da banda de abertura durante a tour de Faith, expande o universo de imagética monocromática carregada de suspense, alienação e profunda angústia do álbum.
Um ano depois, Pornography pegava em todos os sentimentos que Faith agitara, na frieza e crueza exploradas neste disco e juntava-os numa misturadora com três depressões alimentadas a quantidades enormes de álcool e LSD. O resultado foi o pesadelo infernal que ditou o fim da formação inicial dos The Cure. Contudo, apesar de ser em tudo muito mais extremo, Pornography perde para Faith precisamente por isso mesmo: é demais. Faith é sombrio e negro, mas não nos arrasta para o infernal buraco sem fundo do seu sucessor. Apesar de serem dois dos melhores registos da banda, o minimalismo atmosférico com que Faith aborda os mesmos lugares da mente humana torna-o um objeto artístico mais distopicamente fascinante e masoquisticamente belo. “The party just gets better and better”.