Cal Viva é um disco denso, de belas canções de temas inóspitos, mas urgentes. É um disco messiânico. A verdade que transmite, no entanto, é mais diabólica do que divina.
Nunca falha, nem no tempo de espera, nem na qualidade das entregas. Cal Viva é o décimo nono longa duração de Sr. Chinarro e já se encontra disponível em formato físico (vinil) e em formato digital, com apenas três canções, pelo menos para já. Como sempre, o Altamont espera de forma ávida pelo lançamento de cada novo disco de Antonio Luque, pelo que chegou a hora de Cal Viva. Ganhemos fôlego, então, para que a escrita se una ao que nos vai na alma, traduzindo-a da melhor maneira possível.
A primeira referência que nos ocorre salientar é a seguinte: Cal Viva inova pelos arranjos, pelo uso de cordas (violoncelos e violinos) e sopros (trompetes e trombones), algo nada comum na discografia do maestro sevilhano. A forma como esses instrumentos soam é de enorme importância ao longo do disco, dando-lhe um certo tom melancólico, por vezes, embora essa ambiência se revele propositadamente enganadora. Alguma da tranquilidade que ouvimos em Cal Viva é um embuste, uma vez que se sente também, e ao mesmo tempo, sobretudo pelas letras das canções, que existe uma forte tensão ao longo de todo o álbum, uma inquietação permanente que parece estar escondida nos enleios melódicos e doces de alguns dos seus temas. O mundo não está para amar. Está perigoso e explosivo. E nele vamos vivendo enredados entre amores e ódios, na paz guerreira das fronteiras físicas e humanas destes novos tempos. Cal Viva sabe disso, sabe o que diz e faz uma leitura atenta e muito pessoal dos dias que correm. E, depois de ouvido todo o álbum, percebemos que Sr. Chinarro torce o nariz ao mundo, “sabiendo que nadie escapará al final”.
As canções de Cal Viva não apresentam a urgência do rock de outros discos, como Asunción (Mushroom Pillow, 2018) ou ¡Menos samba! (Mushroom Pillow, 2012), por exemplo. A única verdadeira exceção será, talvez, “V de victoria”, o primeiro single conhecido. Ou ainda “Una escena”, quiçá? Nos restantes dez temas, os caminhos são outros e chegam a soar, imagine-se, um pouco a bossa-nova, como acontece com “Exvoto”, o tema de abertura de Cal Viva. Algumas doces (mas ácidas) baladas pontuam os lados A e B do álbum. “Flipper” é profética, terrivelmente messiânica, anunciadora do fim dos tempos (“Muchos peces se extinguirán / Después será el turno de la Humanidad”), o mesmo acontecendo com o derradeiro “Me acaricio”, com o já mencionado verso “sabiendo que nadie escapará al final”. Na verdade, o que encontramos neste mais recente trabalho de Sr. Chinarro é um convite à reflexão, uma reflexão profunda sobre o mundo que temos e sobre os caminhos cada vez mais vertiginosos que seguimos, em que as guerras que vão surgindo e se vão mantendo são a prova de que o ser humano parece ter perdido a memória e a consciência da sua própria humanidade. Ou, tão ou mais grave ainda, que a capacidade que temos de conservar ideias e imagens que nos passam pela vista a todo o instante, parecem não ter razão de ser nem força para vingar.
Não há uma única faixa menor em Cal Viva. Todas elas vingam pelas suas melódicas qualidades e subtilezas. Por outro lado, pela natureza dos assuntos que trata, Cal Viva poderá muito bem ser um dos trabalhos mais engenhosos, mais diretos, de maior agudeza de toda a discografia de Sr. Chinarro. O próprio título remete para as atrocidades dos holocaustos passados e recentes, e para a hipótese de que continuem, espalhando-se por todo o lado, inclusivamente por Espanha. A belíssima “Carlos Haya” parece ser um bom exemplo do que dizemos.
Outro aspeto que poderemos destacar neste recente Cal Viva é a sua vertente baladeira, digamos assim, convidando o ouvinte a embalar-se na tranquilidade de canções como “Altavoz Bluetooth”, sonhadora e ondulante como poucas. Referir ainda “Comunión”, terceiro avanço do álbum e uma das suas melhores canções, tão chinarra como os maiores clássicos chinarros de sempre. Que grande canção! “El muelle 1”, “El alto mando” e “La excursión” (com os inuitados versos “Mis últimas palabras / No se comprederán / Necesitaba calma / Y estaba como un flan”) são outros momentos fortes de um álbum que continua a crecer à medida que o vamos ouvindo. Não é isso que acontece com os clássicos?
O prazer de ouvir Sr. Chinarro poderá não ser para todos. E se assim é, esse acaba por ser um mistério de difícil compreensão. Em Sr. Chinarro há génio sem alarde ou gritaria, e há a leveza histórica de um peso que é o seu na música indie espanhola. Pena que os portugueses não o saibam escutar convenientemente. Pena maior ainda que os espanhóis também não o saibam fazer, perdidos nos sons estridentes e festivaleiros que por lá se fazem com grande vigor e sucesso. Antonio Luque, o nome por detrás de Sr. Chinarro, sempre verteu a sua vida em canções. Continua a fazê-lo. Cal Viva é o mais belo e recente exemplo da excelência do seu longo percurso.